quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Ano novo; nova prática eclesial

Fernando Gondim *

Que o ano que se inicia seja para todos nós, brasileiros, o ápice de nossas vidas profissional, amorosa, de paz e de amizade com todos. Quando as adversidades baterem em "nossa porta", e elas estão aí, pois são muitas e, em parte são criadas por nós mesmos, à luz da fé judaica/cristã, façamos como o salmista no Sl 46, 1: "Deus é nosso refúgio e proteção; socorro bem presente na tribulação". Filosófica, sociológica e teologicamente, o ser humano nasceu para ter vida plena, gozar dos prazeres que a vida nos oferece no sentido da total realização humana e social, amar, ser amado e ser feliz, usar os bens da natureza e os criados, democraticamente, desde os tempos do Iluminismo 1 que despertou a liberdade no ser humano, mas, para o cristianismo, sem prejudicar a ninguém, quem quer que seja.(Os próprios cristãos ainda não cumpriram em sua totalidade isto). Quando o ser humano não consegue ser feliz, frusta-se. No sentido primeiro entendamos o que o autor de Jo 10,10 coloca na boca de Jesus: "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância". Isto é uma releitura de Ex 16,8 - 12 e, em Eclo 29, 21 o texto diz: "São coisas indispensáveis à vida: água, pão, roupa e casa para preservar a própria intimidade". E o cerne da questão está no v. 19 de Ex16: "Ninguém acumule para o dia seguinte". E à luz da fé judaica em Dt 15 de 1 – 11 está a lei da remissão que visava possibilitar um recomeço de vida para os empobrecidos. E no v. 4 é dito que “Não deverá haver UM POBRE no meio de vocês, porque Javé vai abençoar você na terra (...).” Esta citação acima (Ex 16, 19) é a primeira ordem que Deus dá a Moisés para falar ao povo após a saída do Egito. Terra, trabalho, bens necessários à vida plena, como frutos do trabalho do homem são bênçãos para a Bíblia. Vejamos: “Deus te dê o orvalho do céu e a fertilidade da terra, trigo e vinho em abundância” (Gn 27, 28). Igualdade social o mais possível. Na Patrística São Basílio, filósofo e bispo, dizia: ”Pertence ao faminto o pão que tu guardas e ao nu a roupa que guardas nos baús, assim como ao descalço o sapato que apodrece em tua casa”. E pelo ano 1230-31 Frei Antônio de Pádua (Santo Antônio), dizia com base nos Evangelhos: "O que é seu é apenas o que você leva para a sepultura". Radicalismo? Não. É Palavra do Deus judaica/cristã feita por mulheres e homens livres e conscientes em busca de uma maior igualdade social à luz da fé cristã
À luz da Filosofia, “Tudo é política” (Emmanuel Mounier, filósofo francês), e em 2012, haverá eleições para prefeito e vereadores nas cidades brasileiras; somos fortes democraticamente e provamos isto, em um aspecto: no voto. Falta-nos sermos democráticos em exigir dos legisladores e executivos governamentais leis justas e fraternas; não aceitar calados decisões políticas injustas, e não aceitar o ídolo capital com suas leis de mercado livre que impõe situações políticas/econômicas anticristãs, pois desumanas, já que tudo o que ofende a dignidade humana é uma negação ao Deus de Jesus. O povo tem força política, mas não sabe disso. 2 1 Era do Iluminismo (ou simplesmente Iluminismo ou Era da Razão) foi um movimento cultural e filosófico de elite de intelectuais do século XVIII na Europa, especialmente na França, que procurou mobilizar o poder da razão, contra o teocentrismo, a fim de reformar a sociedade e o conhecimento prévio. Promoveu o intercâmbio intelectual e foi contra a intolerância e os abusos da Igreja e do Estado. Originário do período compreendido entre os anos de 1650 e 1700, o Iluminismo foi despertado pelos filósofos Baruch Spinoza (1632-1677), John Locke (1632-1704), Pierre Bayle (1647-1706) e pelo matemático Isaac Newton (1643-1727). Príncipes reinantes, muitas vezes apoiaram e fomentaram figuras do Iluminismo e até mesmo tentaram aplicar as suas idéias de governo. O Iluminismo floresceu até cerca de 1790-1800, após o qual a ênfase na razão deu lugar ao ênfase do romantismo na emoção e um movimento Contra-Iluminismo ganhou força. O centro do Iluminismo foi a França, onde foi baseado nos salões e culminou com a grande Encyclopédie (1751-1772) editada por Denis Diderot (1713-1784) com contribuições de centenas de líderes filosóficos (intelectuais), tais como Voltaire (1694 -1778) e Montesquieu (1689-1755).
2 A cultura clássica elabora uma imagem do homem na qual são postos em relevo dois traços fundamentais: o homem como animal que fala e pensa, usa da razão (zoom logikon) e o homem como animal político (zoom politikon). Estes dois traços estão em estreita relação, pois só enquanto dotado do “logos” (palavra), o homem é capaz de entrar em relação consensual
E nós como Igreja, desde que também saibamos (como saber se não nos disseram e nem dizem? Como afirma Paulo em Rm 10, 17 e 14c; “A fé depende da pregação” (...); “E como vão ouvir, se não houver quem anuncie?”), temos o direito e a obrigação, à luz da fé e da razão, segundo São Tomás de Aquino (1226 – 1274) monge beneditino, filósofo e teólogo, e para os católicos, com base na Palavra de Deus, da Tradição e do Magistério (Ensino Social da Igreja, ESI, dos doc. do Vaticano II, e para os latino americanos, Medellin, Puebla, Santo Domingo e mais recentemente, Aparecida) de questionar as realidades injustas na sociedade, também através das homilias, grupos de orações, movimentos e pastorais, cultos etc. Somos um povo messiânico e profético, mas como agir como tal se não sabemos disto? Assim se o homem é um animal político (Aristóteles), logo todas as suas ações inclusive as religiosas, são ações políticas. Ora, para os cristãos de confissão católica, como para os cristãos de uma maneira geral, o Evangelho deve estar acima das instituições confessionais, pois não deve prender-se a nenhuma ideologia (Paulo VI). No cristianismo, que é uma constituição eclesial milenar, o poder do sagrado não é motivo de "status", mas de serviço, caso contrário seus dirigentes negam e traem Jesus Cristo. Os pastores católicos que não colocam o seu ministério eclesial a serviço da libertação do povo passam a ser um patrão, um gerente, introjetando, colocando e reproduzindo na prática das relações eclesiais, o neoliberalismo e sua ideologia. Filosoficamente quem se cala, consente e é conivente. No doc. “Dei Verbum” nº 10 a Igreja diz que o Magistério deve está a serviço da Palavra de Deus e não acima dela. A maioria dos cristãos católicos leigos não sabe que a única relação eclesial com o clero é pelo batismo, pois o padre "foi tirado" do meio do rebanho dos leigos para assumir o magistério sacerdotal. Todos o foram por vocação? E etimologicamente, embora não sejam estes os sentidos eclesiais dos termos, a palavra clero vem do grego e quer dizer: aquele que tudo sabe; idem com a palavra leigo a qual quer dizer o que nada sabe, literalmente, um "idiota" (sic). Assim, eclesial e diacronicamente, passou-se a idéia de que os leigos são subalternos aos padres. Ledo engano! Em muitos casos históricos na Igreja Católica, os padres mandam os leigos obedecem e muitas vezes sem questionamento. O papa João Paulo II no doc. “Confirma teus irmãos”, (Loyola, 1996, p. 56), afirma que “[...] O
com seu semelhante e instituir a comunidade política. E a vida política, vida humana por excelência segundo a concepção clássica, se exerce pela livre submissão ao logos codificado em leis justas. Por outro lado, essas duas características fundamentais do homem se manifestam em atividades dotadas de finalidades específicas, a atividade da contemplação (theoria) e a atividade do agir moral e político (práxis). Ao fazer do domínio da práxis um domínio específico e autônomo de racionalidade, Aristóteles pode ser considerado, se não o criador, certamente o sistematizador da Ética e da Política como dimensões fundamentais do saber do homem sobre si mesmo, vem a ser, da antropologia. A unidade dos domínios ético e político se manifesta no fato de que, segundo Aristóteles, o homem tal como ele o considerava na sua expressão acabada, isto é, o homem helênico, é essencialmente destinado à vida em comum na polis e somente aí se realiza como ser racional. Ele é um animal político por ser exatamente um animal de linguagem, sendo a vida ética e a vida política artes de viver segundo a razão. Por sua vez as virtudes que a Ética estuda, seja as recebidas dos costumes da cidade, seja as adquiridas pelo ensinamento, só na vida política encontram o campo do seu pleno exercício. Ética e Política são assim, para Aristóteles, como tinham sido para Sócrates e Platão, o campo por excelência onde se manifesta a finalidade do homem coroada pelo exercício da razão ou definida pela primazia do logos. O tratado sobre o "viver feliz" com que Aristóteles abre o livro primeiro da Ética a Nicômaco leva à sua expressão acabada o finalismo moral de Sócrates e é, sem dúvida, um dos textos fundamentais para a compreensão da visão clássica do homem. (Antropologia Filosófica I, Vaz, Henrique de Lima)
"É evidente que a cidade faz parte das coisas naturais, e que o homem é por natureza um animal político. e aquele que por natureza, e não simplesmente por acidente, se encontra fora da cidade ou é um ser degradado ou um ser acima dos homens, segundo Homero (Ilíada, IX, 63) denuncia, tratando-se e alguém: sem linhagem, sem lei, sem lar.Aquele que é naturalmente um marginal ama a guerra, e pode ser comparado a uma peça fora do jogo. Daí a evidência de que o homem é um animal político mais ainda que as abelhas ou que qualquer outro animal gregário. Como dizemos freqüentemente, a natureza não faz nada em vão; ora, o homem é o único entre os animais a ter linguagem (logos). O simples som é uma indicação do prazer ou da cor, estando portanto presente em outros animais, pois a natureza destes consiste em sentir o prazer e a dor e em expressá-los. Mas a linguagem tem como objetivo a manifestação do vantajoso e do desvantajoso e portanto do justo e do injusto. Trata-se de uma característica do homem ser ele o único que tem o senso do bom e do mau, do justo e do injusto, bem como de outras noções deste tipo. É a associação dos que têm em comum essas noções que constitui a família e o estado." (Política - Aristóteles)

fiel leigo na sua própria vida cristã e em sua atuação na Igreja, não é um mero auxiliar do Bispo e do Padre [...]”.
Os leigos têm o dever e o direito de questionar, darem suas opiniões aos pastores e aos outros fiéis, e isto para o bem da Igreja e da comunhão eclesial. (Código do Direito Canônico, nº 1493, cân. 212, 3). João Paulo II em Sto Domingo, na homilia inaugural, disse que "A Igreja, despertando as consciências pelo Evangelho, ajuda a despertar as consciências adormecidas (...)" (DSD, Disc. Inaugural, nº 19). Ora, despertar a consciência é formar homens politizados, é formar uma sociedade sujeito e consciente de sua própria história e não a reboque de qualquer ideologia, especialmente às religiosas e, hoje despertar ás consciências adormecidas é mostrar ao povo que a realidade social vivida hoje, é fruto da lógica da ideologia neoliberal, e não mais vontade de Deus, como muitos ainda pensam. E em assim pensando introjetam e reproduzem aquela na vida diária, no trabalho, nas igrejas etc. Como nos disse o papa, “despertar as consciências”, teológica, filosófica e sociologicamente, vai de encontro a muitas práticas eclesiais católicas (ainda teocêntrica e tridentina) e do mercado, as quais querem manter uma sociedade calada, submissa e obediente, especialmente aos pastores (igrejas cristãs) e ao mercado (governos, patrões, instituições, etc. (Cf. CHAUÍ, Marilena. Ideologia).
Muitos grupos católicos e evangélicos separam fé e política, ensinam que não se deve misturar uma com a outra, só vale o “espiritual", etc. Isto não é bíblico e nem faz parte do Ensino Social da Igreja Católica. É parte da ideologia neoliberal capitalista introjetada e reproduzida por muitos cristãos. Não é o ensinamento do Evangelho. A esta afirmação ideológica de separar fé e política, recordamos uma frase de Mohandas Karamchand Gandhi (1869 - 1948), advogado indiano e de religião mulçumana e mais conhecido popularmente por Mahatma Gandhi (do sânscrito "Mahatma", "A Grande Alma") o qual disse que “Durante toda a minha vida busquei a verdade; e esta busca levou-me à política; e, portanto posso dizer, sem a mínima hesitação, e também com toda a humildade que, não entendem nada de religião aqueles que afirmam que ela, a religião, nada tem a ver com a política.”
Portanto para nós cristãos (católicos e evangélicos) sigamos os passos do pregador itinerante de Nazaré da Galiléia, Jesus Cristo, o qual, segundo o primeiro Evangelho escrito, Marcos, suas primeiras palavras são de chamar para uma mudança de vida, isto é: convertei-vos. (Mc 1, 15b). E no grego a palavra "metanoia" (metanóia) = conversão, que no original grego, língua em que foi escrito o nosso Novo Testamento, não é a prática de exercícios religiosos, mas fazer uma mudança radical no sentido do Deus de Jesus, que é a justiça (Dt 32, 4), na vida pessoal, trabalhista, financeira, política, social e ideológica (aqui entra a religião, no mundo das idéias). Mateus diz que as primeiras palavras de Jesus são: "(...) Devemos cumprir toda a justiça" (Mt 3, 15b). E Jesus questiona, com sua prática, os poderes de sua época. E disse: “Assim como eu fiz, façais vós também” (Jo 13, 15). Por isto, por sua coerência com o Reino de Deus é assassinado. E aqui, novamente, recordamos duas frases de Gandhi, o qual disse: “Eu seria cristão, sem dúvida, se os cristãos o fossem vinte e quatro horas por dia.”; e também disse algo após ler o Novo Testamento em grego: “Amo e venero o Cristo; mas odeio os cristãos”. Quando disse isto seu país, a Índia e seu povo, os indianos, eram massacrados pelos cristãos ingleses.
O autor de Marcos relata que quando Jesus e seus discípulos partiram para Jerusalém, vindo da Galiléia, o lugar dos excluídos da sociedade epocal, Jesus ia à frente e os discípulos atrás dele e com medo (Mc 10, a.b.c). E a gota d'agua de sua condenação, do ponto de vista de seus acusadores, foi seu ensinamento a partir dos mais pobres da Galiléia, de seu tempo e com eles esteve não para deixá-los lá, mas para resgatá-los da situação de exclusão social em que viviam. Dizem seus acusadores: "Ele está revolucionando o povo com o seu ENSINAMENTO; começou na Galiléia, passou por toda a Judéia e agora chegou aqui" (Lc 23, 5). Este "aqui", à época, era Jerusalém, o centro epocal do poder político, econômico, militar e religioso de Herodes (político), de Caifás (religioso) e de Pilatos (o econômico e militar).
Os cristãos, historicamente com várias exceções, hoje, estão revolucionando a sociedade e seus sistemas estabelecidos (a política, a economia, etc) a partir do que ouvem
como ensinamento, na catequese, nas homilias, nos grupos de orações, nas pastorais e movimentos, nas Igrejas cristãs como um todo? Há questionamentos por parte dos poderes estabelecidos a respeito do que as igrejas ensinam ao povo, partindo da realidade neoliberal em que se vive hoje? Se não há questionamentos, críticas, perseguições políticas e até martírios é uma prova de que o que é ensinado nas igrejas e dito nas homilias, nos cultos, nos grupos de orações, está de acordo com a ideologia neoliberal capitalista. De acordo com ela e reproduzindo nos cultos, o sistema ideológico e sua lógica. Não questiona nada! A prática eclesial faz, ideologicamente, o jogo dos sistemas estabelecidos. Não passa também, assim como outras instituições sociais, de uma correia ideológica do motor neoliberal.
Já nos primórdios da Igreja cristã, os apóstolos enfrentaram situações e problemas com as autoridades judaicas e também com a romana em Jerusalém, por causa da pregação e do ensinamento em nome de Jesus, assassinado pelo sistema ideológico epocal e ressuscitado, à luz da fé, por sua coerência com o Reino do Pai. O redator de Atos cap. 2 narra a primeira pregação de Pedro ao povo em Jerusalém onde ele acusa a causa da morte de Jesus e a acusação de assassinato. “(...) vocês o mataram (...) At 2,23 b. No texto original do NT em grego o autor usa o verbo anairew (anairéu) que significa: assassinar, aniquilar, destruir, matar, eliminar, abater, condenar alguém à morte. (Cf. THE GREEK NEW TESTAMENT; RUSCNI, Carlo, Dicionário do Grego do Novo Testamento, Paulus, 2003). Ainda segundo o texto de At 2,14 – 36 onde Pedro fala da esperança messiânica da vinda do Messias, desde o pós exílio (586 a 538 a. C.), no v.36, vem a conclusão da pregação cristã, que foi de denúncia, acusação, mas termina com o anúncio da esperança messiânica que todo o Israel esperava: o messias. “Que todo o povo de Israel fique sabendo com certeza que Deus tornou Senhor e Cristo aquele Jesus que vocês crucificaram”.

Como consequência desta pregação, vejamos o que diz o texto seguinte:
Quando ouviram isso, todos ficaram de coração aflito e perguntaram a Pedro e aos outros discípulos: Irmãos, o que devemos fazer? Pedro respondeu: Arrependam-se, e cada um de vocês seja batizado em nome de Jesus Cristo, para o perdão dos pecados; depois vocês receberão do Pai o dom do Espírito Santo. Pois a promessa é em favor de vocês e de seus filhos, e para todos aqueles que estão longe, todos aqueles que o Senhor nosso Deus chamar. Com muitas outras palavras, Pedro lhes dava testemunho e exortava, dizendo: Salvem-se dessa gente corrompida. Os que acolheram a palavra de Pedro receberam o batismo. E nesse dia uniram-se a eles cerca de três mil pessoas. (At 2, 37 – 41)

Com sabemos a cada ação há sempre uma reação. Os que ouviram e aceitaram a Palavra, questionaram os discípulos perguntando: o que devemos fazer? E diz o texto que a Palavra, a conversão e o batismo despertaram a consciência popular daqueles para fazer a diferença na sociedade:
Eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, no partir do pão e nas orações. Em todos eles havia temor, por causa dos numerosos prodígios e sinais que os apóstolos realizavam. Todos os que abraçaram a fé eram unidos e colocavam em comum todas as coisas; vendiam suas propriedades e seus bens e repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um. Diariamente, todos juntos freqüentavam o Templo e nas casas partiam o pão, tomando alimento com alegria e simplicidade de coração. Louvavam a Deus e eram estimados por todo o povo. E a cada dia o Senhor acrescentava à comunidade outras pessoas que iam aceitando a salvação. (At 2, 42 – 47).

Os cristãos primitivos mudaram suas atitudes (converteram-se) pelo ensinamento da Palavra, que os levou a: de imediato, a repartir os bens e, em ação de graças pelo gesto de primeiro, celebrar a eucaristia e serem fiéis às orações, de acordo com o costume judaico. O que chama a atenção é: o ouvir a Palavra e a pregação como explicação daquela, levou o
grupo a repartir os bens, como consequência imediata, para colocar, no linguajar hermenêutico hodierno, a vontade de Deus na prática (não deve haver UM POBRE entre vocês. Dt 15, 4); o celebrar a eucaristia nas casas “(...) como celebração nova e específica em cumprimento do mandato de Jesus em Lc 22, 19” (Pe. Alonso Schökel, 1920 - 1998 , mestre e doutor em Teologia); e o mais importante: hierarquicamente a oração está em último lugar, como fundamento, como “o cimento da sociedade cristã” e não em primeiro lugar, que é partilhar os bens. Assim houve realmente a conversão como mudança de atitude social. Segundo o pensamento patrístico os cristãos “inverteram” as coisas: rezam primeiro e ficam só nas rezas e não interferem nas sociedades, aliás até as reproduzem como, hodiernamente no neoliberalismo, mostrando que não houve a verdadeira conversão pois, para Lutero “[...] a verdadeira conversão passa pela mente, pelo coração e pelo bolso”.
Historicamente, fazendo uma análise filosófica da História, sabemos que sempre houve disputas entre as pessoas pelo poder, como muito bem diz o filósofo, historiador e advogado Karl Marx (1818 – 1883), após estudar diacronicamente o passado histórico entre os grupos sociais e, em seu livro clássico, Manifesto do Partido Comunista publicado em primeira edição em 1848, em Londres, Marx diz que:
A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição uns aos outros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora aberta, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária, de toda a sociedade, ou pela destruição das duas classes em luta. Nas primeiras épocas históricas, verificamos, quase por toda parte, uma completa divisão da sociedade em classes distintas, uma escala graduada de condições sociais. Na Roma antiga encontramos patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores feudais, vassalos, mestres, companheiros, servos; e, em cada uma destas classes, gradações especiais. A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classe. Não fez senão substituir novas classes, novas condições de opressão, novas formas de luta às que existiram no passado. Entretanto, a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado.
Por burguesia compreende-se a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social, que empregam o trabalho assalariado. Por proletariado compreende-se a classe dos trabalhadores assalariados modernos que, privados de meios de produção próprios, se vêem obrigados a vender sua força de trabalho para poder existir. (...) A sociedade burguesa moderna, que brotou das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes. Não fez senão substituir velhas classes, velhas condições de opressão, velhas formas de luta por outras novas. (...) Ela despedaçou sem piedade todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus "superiores naturais", para só deixar subsistir, entre os homens, o laço do frio interesse, as cruéis exigências do "pagamento à vista. (...) Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal.(...) O governo do estado moderno não é se não um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa. (...) Tudo que era sólido e estável se desmancha no ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenidade suas condições de existência e suas
relações recíprocas. Impelida pela necessidade de mercados sempre novos, a burguesia invade todo o globo. Necessita estabelecer-se em toda parte, explorar em toda parte, criar vínculos em toda parte.

(Trechos do Manifesto do Partido Comunista, Friedrich Engels e Marl Marx, 2ª edição, Vozes, 1989. O negrito é nosso...)

Se, como dizia o filósofo romano, Cícero "A história é testemunha do passado, luz da verdade, vida da memória, mestra da vida, anunciadora dos tempos antigos”, recorrer à dita cuja, é o único caminho viável para recuperar os fatos históricos para nós hoje.
Ora, os seguidores de Marx “incendiaram” a Europa, o pensamento marxista influenciou revoluções em vários locais, especialmente a Revolução Russa de 1917. (Em 1838, uma estudante russa escreve a Marx, perguntando se havia condições de haver uma revolução em seu país que era governado pelo Czar Nicolau II e com o apoio da Igreja Católica Ortodoxa local, a qual lhe dava o suporte ideológico: os trabalhadores do campo e da cidade eram explorados pela burguesia russa do campo e pelos industriais das cidades e a Igreja fazia cultos pomposos para esconder a realidade (“A Religião é o ópio do povo”). Marx responde que não, pois, o povo não tinha conhecimento de nada, pois não havia escolas para o povo trabalhador. Marx era de descendência judaica. Na Bíblia no livro atribuído ao profeta Oséias, que atuou entre os anos 750 – 725 a C, no Reino do Norte ou de Israel, em uma época de luxo para uma minoria e de exploração para a maioria do povo trabalhador, em 4, 6, o texto diz: “O meu povo está morrendo por falta de conhecimento”; e no versículo 14d, do mesmo capítulo, diz o texto: “Um povo sem entendimento caminha para a perdição”.

No final do séc. XVII e início do XVIII, paulatinamente, surge a Revolução Industrial a qual consistiu em um conjunto de mudanças tecnológicas com profundo impacto no processo produtivo em nível econômico e social, iniciado na Inglaterra. Guerras, revoltas, expansão das indústrias, disputa por lucros cada vez maiores, através da exploração capitalista aos trabalhadores, a burguesia européia exigia a abolição da escravidão negra, “invocando” o trabalho livre (sic!) para poder exportar seus produtos, para a África, e especialmente para o Brasil, que, à época, era o único país da América a ter escravos ainda. E a escravidão brasileira tinha o apoio de muitos clérigos, não de todos, e de algumas congregações religiosas e da maioria dos cristãos da época no Brasil, que também os tinha e os explorava. Mas o gesto de exigir a abolição da escravatura, por parte da burguesia cristã inglesa, não era nenhum gesto humanitário e nem cristão, mas unicamente pensando em duas coisas: mão de obra barata e a venda de seus produtos industrializados para aumentar seus lucros e a expansão industrial. A Igreja cala-se à época, pois não tinha resposta para o que estava acontecendo. Ela não é ciência e nem faz ciência. E nem podia dar opiniões sobre o que estava acontecendo, pois foi interpretado como “Um espectro ronda a Europa” (Karl Marx); e algo chamado de “coisas novas” (Papa Leão XIII).

Já no final do livro de Marx acima citado, ele dá “seu grito” de alerta aos trabalhadores: "Proletários de todos os países, uni-vos!" A Igreja Católica, historicamente sempre prudente, com cautela e precaução, só depois de 43 anos o papa Leão XIII (foi Papa de 20 de Fevereiro de 1878 até a data de sua morte em 1903) publica seu primeiro “grito” contra a situação de exploração dos operários pelo capitalismo industrial e iniciante da época: o primeiro documento do Ensino Social da Igreja (ESI), Rerum Novarum,(RN), (Das Coisas Novas), de 15 de maio de 1891. No contexto das inovações sociais européias, em 1891, Leão XIII sentindo a urgência dos novos tempos e das "coisas novas" promulgou a encíclica acima citada. A ela seguiu-se a encíclica Quadragesimo Anno,(QA), de Pio XI em 1931. João XXIII publicou, em 1961, a Mater et Magistra (MM) e Paulo VI a encíclica Populorum Progressio (PP), em 1967, e a carta apostólica Octagesima Adveniens,(OA) em 1971. De sua parte João Paulo II não foi menos preocupado com o tema da "questão social", publicou três encíclicas: Laborens Exercens (LE) em (1981), Sollicitudo Rei Socialis (SRS) em (1987) e, finalmente Centesimus Annus (CA) em 1991, pouco tempo depois da queda do Muro de Berlim e da derrocada do comunismo e da Cortina de Ferro. Do Concílio Vaticano II (1962 a 1965), foi publicado o documento Gauduim et Spes (GS), (Alegria e Esperança) dia 08 de dezembro de 1965, último documento do Cocílio e no último dia das seções conciliares, livro onde a Igreja abre-se para o mundo, já que esteve “fechada” durande Pio XII, questiona-se e questiona a sociedade.
O Ensino Social da Igreja, que à luz do Evangelho coloca o homem e o trabalho acima do dinheiro e do poderes econômico, ideológico e político, pregando a luta por uma sociedade justa e fraterna e em defesa da vida em todas as circunstâncias e ensina o compromisso entre fé e vida. No Doc. de Santo Domingo (DSD), nº 50 diz que:
“A função profética da Igreja, que anuncia Jesus Cristo, deve mostrar sempre os sinais da verdadeira "valentia" (parresía: cf. At 4,13; 1Ts 2,2) em total liberdade diante de qualquer poder deste mundo. Parte necessária de toda pregação e de toda catequese deve ser a Doutrina Social da Igreja, que constitui a base e o estímulo da autêntica opção preferencial pelos pobres”. (DSD, 50)
À luz do texto acima, pergunta-se: atualmente o ESI é parte integrante do contexto, do que é dito nas pregações e homilias nas missas, na catequese, nos movimentos e pastorais, nos grupos de orações, como nos ensina o doc. de Santo Domingo no texto citado? Caso contrário a Igreja Católica não está seguindo as orientações oficiais, neste sentido, estabelecidas no Vat. II e, para nós latino-americanos, as orientações de Medellín, Puebla e Sto. Domingo.Todos já leram estes documentos? (conhecemos padres que nunca os leram e já os acham sem sentido... sic!) É atualíssimo o alerta do papa Leão XIII à Igreja, ontem como hoje, frente às desigualdades sociais, à exclusão e exploração humana dos direitos inalienáveis à vida, especialmente os mais pobres e “incapazes”, para o capitalismo burguês e industrial de seu tempo e frente às ideologias econômico/políticas as quais não permitem que os avanços das tecnologias cheguem a todos: “Se a Igreja se calar está traindo o seu dever” (RN, nº 10), aos “olhos” de Deus e da sociedade, pois, ensino e a difusão do Ensino Social da Igreja, fazem parte de sua missão evangelizadora e a sua finalidade é interpretar as realidades, examinar a sua conformidade com o ensinamento do Evangelho, sobre o ser humano e para isto os teólogos devem lançar mão da filosofia, da sociologia e das teologias cristãs para darem respostas claras e sem subterfúgios, como coragem profética ao povo e aos pastores, que também são povo de Deus. (Cf; Solicitude Social, 1987; Fides et Ratio, ambas de João Paulo II).
Claro está que ao longo da existência do ESI a Igreja Católica tem um vasto e rico material de análise das sociedades existentes desde 1891 até nossos dias e as críticas a estes sistemas são ferrenhos, pois o ESI baseia-se na Bíblia, na Tradição cristã (do séc. II ao XV da era cristã) e no próprio Magistério, o qual, ou está a serviço da Palavra de Deus, ou já perdeu seu sentido. João Paulo II no doc. LE, nº 3 diz que:
A doutrina social da Igreja, efectivamente, tem a sua fonte na Sagrada Escritura, a começar do Livro do Génesis e, em particular no Evangelho e nos escritos dos tempos apostólicos. Dedicar atenção aos problemas sociais faz parte desde os inícios do ensino da Igreja e da sua concepção do homem e da vida social e, especialmente, da moral social que foi sendo elaborada segundo as necessidades das diversas épocas. Um tal património tradicional foi depois herdado e desenvolvido pelo ensino dos Sumos Pontífices sobre a moderna « questão social », a partir da Encíclica Rerum Novarum. http://www.vatican.va/edocs, acessado em 05.01.12, às 04h50
No texto acima João Paulo II afirma que desde o início da Igreja que, dedicar-se às questões sociais faz parte da evangelização e esta passando pela tradição e chegando às “coisas novas”, no dizer de Leão XIII (industrialização, capitalismo, “mais valia”, acúmulo de riquezas por alguns e miséria para a maioria, exclusão social, fome, desemprego, aposentadorias diminutas, tudo por conta do capitalismo iniciante etc), que são objeto de críticas por parte da Igreja; e João Paulo na homilia de abertura do encontro do CELAN em Puebla no dia 28.01.79, citando os padres da patrística, textos bíblicos e seu antecessor, Paulo VI o qual dizia que “(...) o desenvolvimento é o novo nome da paz” (PP 76 – 79) e fazendo uma crítica ao capitalismo epocal, João Paulo diz que o mesmo produz “(...) ricos cada vez mais ricos, à custa de pobres cada vez mais pobres” (Puebla, p. 29, Paulinas, 1979).
A partir do Concílio Vaticano II a Igreja Católica passa a atuar na sociedade de seu tempo, algo que foi proibido durante o pontificado de Pio XII (1939 – 1958) quando teólogos, professores de faculdades católicas, padres, religiosos (as), cientistas, foram “silenciados” pelo papa acima citado, pois a Igreja não deveria meter-se nas questões do mundo (SIC!).

Após apurado estudo dos documentos do ESI desde Leão XIII até João Paulo II, o Pe. Fernando Bastos D’Avila, sj, (1918 – 2010), mestre e doutor em Filosofia e Teologia, em sua pequena Enciclopédia do ESI, na qual ele publicou suas pesquisas sobre o tema, o mesmo diz que o ESI não reprova o capitalismo em si, mas a maneira ideológica de como as elites e a burguesia do mercado (capitalismo) ou o capitalismo de Estado (marxismo/comunismo) conduzem este sistema e, especialmente os donos do capital (do latim “caput”, isto é cabeça), através da ideologia capitalista dominante, exploram, manipulam e dominam sociedade e seus resultados, para beneficiar uma minoria burguesa e explorar a maioria dos trabalhadores. Quanto a isto a Igreja sempre o reprovou.
Vejamos algumas citações de textos do ESI e de outros documentos da Igreja ao longo dos anos:
“O que é vergonhoso é usar dos homens como de simples instrumentos de lucro e não os estimar senão na proporção do vigor de seus braços” (Leão XIII, RN, 12 b).
O capitalismo é uma “(...) ditadura internacional do dinheiro”. (Pio XI, QA)
“(...) o liberalismo (capitalismo) é uma afirmação errônea da autonomia do indivíduo, na sua atividade, nas suas motivações e no exercício da liberdade”. (Paulo VI, OA, nº 35)
“Não é lícito aumentar a riqueza dos ricos e o poder dos fortes, confirmando a miséria dos pobres e tornando maior a escravidão dos oprimidos” ( Paulo VI, PP, nº 33)
“(...)Enquanto multidões imensas carecem ainda do estritamente necessário, alguns, mesmo nas regiões menos desenvolvidas, vivem na opulência e na dissipação. Coexistem o luxo e a miséria. Enquanto um pequeno número dispõe dum grande poder de decisão, muitos estão quase inteiramente privados da possibilidade de agir por própria iniciativa e responsabilidade, e vivem e trabalham em condições indignas da pessoa humana”. (GS, 63)

“Mas a finalidade fundamental da produção não é o mero aumento dos produtos, nem o lucro ou o poderio, mas o serviço do homem; do homem integral, isto é, tendo em conta a ordem das suas necessidades materiais e as exigências da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa; de qualquer homem ou grupo de homens, de qualquer raça ou região do mundo. A
actividade económica, regulando-se pelos métodos e leis próprias, deve, portanto, exercer-se dentro dos limites da ordem moral, para que assim se cumpra o desígnio de Deus sobre o homem” (Idem, 64)
“Deste ponto de vista, continua sendo inaceitável a posição do capitalismo “rígido”, que defende o direito exclusivo da propriedade privada dos meios de produção, como um dogma intocável na vida econômica” (João Paulo II, LE, 14d).
“As desigualdades iníquas e todas as formas de opressão, que hoje atingem milhões de homens e de mulheres, estão em aberta contradição com o Evangelho de Cristo e não podem deixar tranquila a consciência de nenhum cristão”. (Joseph Card. Ratzinger, Libertatis Constiencia, nº 57, 1986).
“É lógico concluir, ao menos por parte de quantos crêem na Palavra de Deus, que o «desenvolvimento» de hoje, deve ser considerado como um momento da história iniciada com a criação e continuamente posta em perigo por motivo da infidelidade à vontade do Criador, sobretudo por causa da tentação da idolatria; mas ele corresponde fundamentalmente às premissas iniciais. Quem quisesse renunciar à tarefa, difícil, mas nobilitante, de melhorar a sorte do homem todo e de todos os homens, com o pretexto do peso da luta e do esforço incessante de superação, ou mesmo pela experiência da derrota e do retorno ao ponto de partida, não cumpriria a vontade de Deus criador.” (João Paulo II, SRS, nº 30, 1987)
“Como vimos, é INACEITÁVEL a afirmação de que a derrocada do denominado “socialismo real” deixe o capitalismo como único modelo de organização econômica” (João Paulo II, CA, nº 49)
Para João Paulo II a Igreja deve “(...) anunciar o Evangelho da vida, clara luz que ilumina as consciências, esplendor da verdade que cura o olhar ofuscado, fonte inexuarível de constância e coragem para enfrentar os desafios sempre novos que encontramos no nosso caminho” (Evangelium Vitae, nº 6).
“A Igreja não pode deixar de exercer uma crítica rigorosa à ideologias que desprezam os valores éticos fundamentais e de apoiar, como todos os meios ao seu alcance, a construção de uma sociedade solidária. Ao meso tempo precisa fazer um exame de consciência, interrogando-se sobre as responsabilidades que lhes cabem nos males de nosso tempo, particularmente diante das graves injustiças e da marginalização social, para discernir o que pode fazer”. (Missão e ministérios dos cristãos leigos e leigas, Doc. Da CNBB, nº 21)
Como vimos nestes poucos textos acima, o anúncio do Evangelho deverá despertar as consciências do povo, para assumir seu lugar no mundo, na política, na economia, nos partidos políticos (Cf: João Paulo II, exortação apostólica Vocação e Missão dos leigos, 1988)
Os bispos em Puebla atualizando para a América Latina as decisões do Concílio Vaticano II, e fazendo uma crítica ao capitalismo, dizem a respeito deste:
O liberalismo capitalista, idolatria da riqueza em sua forma individual. Reconhecemos a força que infunde a capacidade criadora da liberdade humana e que foi o propulsar do progresso. Contudo, “considera o lucro como o motor essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos meios de produção como direito absoluto, sem limites nem obrigações sociais correspondentes” (PP 26). Os privilégios ilegítimos, derivados do direito absoluto de propriedade, causam
contrastes escandalosos e uma situação de dependência e opressão, tanto no âmbito nacional quanto no internacional. Embora seja evidente que em alguns países se atenuou sua expressão histórica original, devido à influência de uma necessária legislação social e de precisas intervenções do Estado, em outros lugares ainda manifesta persistência ou, mesmo, retrocesso a formas primitivas e de menor sensibilidade social. (Puebla, 542)
Se para o autor de Is 32,17, a paz é fruto da justiça e a Igreja na AL, diz no doc. de Medellin, parte 2.2 que
“A paz com Deus é o fundamento último da paz interior e da paz social. Por isso mesmo, onde a paz social não existe, onde há injustiças, desigualdades sociais, políticas, desigualdades econômicas e culturais, rejeita-se o dom da paz do Senhor; mais ainda, rejeita-se o próprio Senhor (Ml 25,31-46)” .
O texto acima é bastante questionador para nossa prática cristã/eclesial católica hoje. Diz que onde não há vida plena para todos, como nos diz Jesus em (Jo 10, 10), há negação do próprio Deus de quem se diz crente...E qual é, atualmente, a causa desta negação da vida para muitos? É a lógica do neoliberalismo capitalista com suas leis de mercado livre, excludente dos mais pobres, da grande maioria dos trabalhadores e dos desempregados e que só favorece uma elite e, esta, é uma minoria e que muitos desta minoria burguesa, participam de movimentos da Igreja! E nada ouvem contra este sistema! Um exemplo: quantas igrejas cristãs (católicas e evangélicas) celebram seus rituais, missas, cultos, estudos bíblicos etc e fora dos prédios, nas ruas e praças ao redor daqueles, há pessoas pedindo esmola, ajuda e tudo continua o mesmo há tempos... Que diria Francisco de Assis se visse hoje tudo isto novamente? Nesta mesma situação no feudalismo de seu tempo, que fez ele? Se os profetas Amós, Isaías, Jeremias, Oséias, Joel etc., vissem isto? Ficariam calados? E se somos uma Igreja que tem por alicerce os apóstolos e os profetas e como pedra principal o próprio Jesus Cristo (Ef 2, 20), como explicar vivermos sem conversão verdadeira do ponto de vista bíblico? Claro está que não podemos generalizar, pois, ao longo da história do cristianismo sempre houve, ontem como hoje, pessoas e grupos tanto de católicos e de evangélicos que dedicaram suas vidas pelos mais pobres e excluídos, mas filosófica e sociologicamente, não atingiram o ápice do problema: as causas desta exclusão social, que hoje, repetimos, é a lógica neoliberal que é excludente da maioria. Se no doc. Rerum Novarum, a Igreja à época questionava o marxismo, o socialismo e o comunismo, e a burguesia capitalista, hoje, na prática do dia a dia, nas pregações, cultos etc, se cala diante do neoliberalismo muito embora, como vimos, há uma gama enorme de citações em seus documentos contrárias a esta ideologia? Filosófica e sociologicamente, calar-se é aceitar o que está aí. Popularmente dizemos: quem cala, consente! E consentir é trair sua missão, seu fundador e o próprio Deus! É a própria Igreja, pela sua vivência e prática, que afirma isto!
Após todos os movimentos políticos/sociais na Europa após 1920, com o fortalecimento das indústrias e do mercado capitalista, um grupo de filósofos (Horkheimer, Marcuse, Adorno, Benjamim e Habermas), em sua maioria descendentes de judeus, criou a chamada “Escola de Frankfurt”, onde procuraram voltar-se para as pesquisas sociais que buscavam analisar a sociedade, aprofundando e atualizando o marxismo à época. Faziam uma análise a respeito dos contextos econômico, histórico, psicológico, ideológico e cultural. Houve perseguições dos nazistas e após a guerra conseguem reunir-se. Atualmente apenas Habermas continua vivo e seu pensamento filosófico a respeito da sociedade industrial moderna, é:
“(...) a análise que ele faz da racionalidade desta sociedade, caracterizando-a como ‘razão instrumental’. De acordo com esta perspectiva, o desenvolvimento técnico e a ciência voltados para a aplicação técnica na sociedade industrial podem acarretar a perda da autonomia do ser humano e do próprio bem
submetidos, igualmente, às regras de dominação da técnica” (...) A razão instrumental é a degradação, a subversão da racionalidade iluminista, que falseia o projeto de emancipação do ser humano e transforma-o em mero instrumento do capital” (GARCIA, Roberto & VELOSO, Valdecir, IN: EUREKA, Construindo Cidadãos Reflexivos, Ed. SOPHOS, 2011).
Assim os estudos da Escola de Frankfurt, hoje, nos ensinam, filosoficamente, que o ser humano hoje é apenas um escravo do neoliberalismo, já que vivemos a “razão instrumental” e esta não liberta o ser humano, mas o escraviza, pois é “lacaia do poder” do capital. Esta razão não nos dá mais segurança para vivermos bem e feliz, frente a tantos progressos técnicos científicos, pois não há um horizonte seguro, mas medo, insegurança e não certeza do amanhã, pois como diz Reale e Antisere, dois filósofos, quem decide sobre o bem e sobre o mal, agora é o sistema financeiro, o grande capital. E assim as igrejas, como instituições, estão também a serviço deste capital industrial, injusto, assassino e degradante do ser humano, seja ele “bem sucedido” no mercado ou excluído do mesmo. No documento de João Paulo II, “Centesimus Annus” de 1991, no numeral 18, o papa apóia a ideia de Habermas, em crítica à razão instrumental em relação ao mau uso da técnica e da ciência, quando afirma que
O progresso científico e tecnológico, que deveria contribuir para o bem estar do homem, acaba transformado num instrumento de guerra: ciência e técnica são usadas para produzir armas cada vez mais aperfeiçoadas e destrutivas, enquanto a uma ideologia, que não passa de uma perversão da autêntica filosofia, se pede que forneça justificações doutrinais para a nova guerra. E esta não é apenas temida e preparada, mas é combatida, com enorme derramamento de sangue, em várias partes do mundo. (http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents - acessado em 29.12.11)
Se para os redatores bíblicos, especialmente no relato teológico da Criação no capítulo primeiro do livro do Gênesis, o autor diz que tudo o que Deus fez era e ainda é bom. Quando relata a criação do homem e da mulher sexuados, o texto diz que “era muito bom”. Teologicamente o homem, como o centro da criação (Sl 8), deve cuidar deste “jardim”, pois sua vida depende dele, da mãe terra, o que na era industrial não acontece, mas tudo é visto pela ótica da especulação financeira, tudo deve ser transformado em dinheiro, lucro, riqueza para uma minoria: os burgueses.
Ora, se o Deus de Jesus é a justiça (Dt 32,4) e se a mesma não existe na sociedade que se diz cristã, pois esta nega o Deus que diz crê e a prática da justiça social como ensina o ESI. Portanto, à luz dos textos dos profetas e especialmente o de Amós 5, 21-24, o qual diz:
Eu detesto e desprezo as festas de vocês; tenho horror dessas reuniões. Ainda que vocês me ofereçam sacrifícios, suas ofertas não me agradarão, nem olharei para as oferendas gordas. 23 Longe de mim o barulho de seus cânticos, nem quero ouvir a música de suas liras. Eu quero, isto sim, é ver brotar o direito como água e correr a justiça como riacho que não seca. Vocês por acaso fizeram ofertas ou me ofereceram sacrifícios durante os quarenta anos de deserto, ó casa de Israel? (Am 5, 21 – 24)


Se as celebrações do tempo de Amós, Oséias etc, eram todos cultos vazios, sem credibilidade, pois eram apenas “pompas vazias” e sem aceitação pelo Pai, pois não transformavam a sociedade judaica epocal, mas lhes davam sustentáculo ideológico, que
dizer das hodiernas? Se a Igreja (as) celebrante (es) não questionarem as realidades dos tempos dos “pregadores”, como nos mostra o texto do livro atribuído ao profeta Oséias (+ ou – em 782 a 753), no tempo do rei Jeroboão II no Reino do Norte, quando houve um crescimento econômico seguido de fortes contrastes sociais: riqueza e luxo para uma minoria e pobreza para os excluídos, agrada a Deus? Segundo o profeta em questão, os sacerdotes de Javé calaram-se e a Palavra de Deus os questiona pela boca do profeta contra aqueles: “Embora ninguém acuse, ninguém contesta, eu levanto a acusação contra você, sacerdote!” (Os 4, 4). E continua: “O meu povo está morrendo por falta de conhecimento” (v. 6). Estes e tantos textos dos profetas, ainda hoje não são atuais? E se hoje para muitos, o que ouvem sobre a “Palavra” é durante os cultos e se nestes nada sobre as realidades políticas, econômicas, sociais e ideológicas que são contrárias ao Criador, à fé cristã, ao próprio Jesus Cristo e ao Evangelho, repetimos, nada é dito, questionado, como vão saber algo sobre as causas eo por que do que está acontecendo? Se cultos e missas são feitos, celebrados até nas televisões e nada é dito para não questionar o sistema, somos fiéis à Palavra de Deus? Fica para nós um grande questionamento: é possível ser cristão e aceitar o capitalismo com suas leis de mercado livre, sutis, ideológicas, injustas, desumanas, assassinas e excludentes da maioria da população a qual mesmo alguns, ás duras penas, usufruindo dos bens industriais à custa da ideologia consumista do mercado? Então, à luz da Palavra de Deus contida na Bíblia, na Tradição Cristã e no ESI, somos fiéis ao Deus de Jesus, de Moisés, dos profetas, dos pobres de Javé, de José e de Maria e fiéis ao próprio Jesus Cristo e à prática da Igreja iniciante?
Não se pode negar que orientações oficiais da Igreja Católica para uma análise e interpretação das realidades contrárias à fé cristã, existem, como vimos algumas acima citadas. O que nos falta como um todo eclesial? Uma coragem profética. Já desde o início da etnia do futuro povo de Israel (Ex 1 ― 16), Moisés “recusou-se “ falar com o faraó e Deus lhes manda seu irmão Aarão o qual falará em nome de Moisés, mas a Palavra será proclamada, pois Deus estava na boca de Moisés pela palavra de seu irmão (Ex 4, 15 – 16).O mesmo aconteceu com alguns profetas que, humanamente falando, tiveram medo e disse-lhes Deus: ”Colocarei minha palavra na sua boca (...) (Is 51, 16 a); Jeremias recusa-se a cumprir a missão de questionar os poderosos de seu tempo, mas Deus lhes diz: “Estou colocando minhas palavras em sua boca” (Jr 1, 9 b). Assim foi com os outros profetas.
Já na Patristica em meio às questões sociais de seu tempo, São Gregório Magno ( 540 – 604, foi monge beneditino e papa), em uma de suas homilias disse que “(...) quem tem o talento da palavra tome cuidado em não se calar”. Um texto atribuído a Lc onde o autor registra um fato de que os discípulos entusiasmados com tudo o ouviram e viram, pois, esperavam a paz messiânica os quais creditaram a Jesus. Vejamos:
Quando Jesus estava junto à descida do monte das Oliveiras, toda a multidão de discípulos começaram, alegres, a louvar a Deus em voz alta, por todos os milagres que tinham visto. E dizia: Bendito seja aquele que vem como Rei, em nome do Senhor! Paz no céu e glória no mais alto do céu. No meio da multidão, alguns fariseus disseram a Jesus: Mestre, manda que teus discípulos se calem. Jesus respondeu: Eu digo a vocês: se eles se calarem, as pedras gritarão. (Lc 19, 40).

O texto nos diz que os discípulos louvavam a Deus (para a cultura teológica judaica/cristã, “Só louva ao Senhor, quem tem vida e saúde (Eclo 17, 23 b). E alguns fariseus pedem para os discípulos se calarem-se. Ora, os seguidores de Jesus o aclamavam como Rei, assim como seus antepassados fizeram ao aclamarem Salomão como (1Rs 1, 40). E o mais importante era que o cortejo ia em direção ao centro do poder dominante, a cidade de Jerusalém, a qual teve medo desde o nascimento do messias Jesus (Mt 2, 3). Os fariseus eram deste grupo dominante.Mas Jesus rebate dizendo metaforicamente, se os discípulos se calarem, até a natureza morta gritariam de alegria.
Já no NT em At 3, 1 – 10, o texto nos mostra algo novo em Israel: Um israelita era coxo de nascença e todos os dias pedia esmolas na entrada do templo em Jerusalém. Ao ver Pedro e João que iam orar no templo, o home lhe pediu esmolas. Aqueles deram o que tinham: “Em nome de Jesus Cristo, levante-se e comece a andar”. Segundo o texto o homem levanta-se e entra no templo junto com os dois discípulos, andando, pulando e LOUVANDO a Deus e o povo viu o homem louvando a Deus, algo impossível no velho sistema, pois excluído, e ficaram admirados e espantados...Já Paulo, em seu tempo, disse: “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho” (1Cor 9, 16).

Então, novo ano, novas esperanças. Tomemos, como cristãos batizados, a coragem profética de denunciar as ideologias dominantes da época, atualmente o neoliberalismo, a coragem de, como Povo de Deus assumir o carisma da profecia recebida no batismo e, juntos como Igreja de Cristo e, como ele fez, vamos à frente, recuperemos o ideal evangélico da liberdade e da justiça, anunciando um “(...) Reino de justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14, 17 b) pois foi para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl 5,1). Com fé, coragem e entusiasmo (do grego, enteos, isto é, “cheio de Deus”) sigamos em frente assim como quando o povo israelita estava acuado e como medo do novo que se apresentava a eles, entre os exércitos do faraó na retaguarda e os desconhecidos mar e o deserto à frente. E Moisés deu uma ordem em nome de Javé: "Diga aos filhos de Israel que avancem!.” (Ex 14, 15).
Um abraço e uma saudação de ano novo do ponto de vista do cearense: “bem porreta”.




*Fernando Gondim é teólogo leigo e é graduado e pós-graduado em Ciências da Religião.