sexta-feira, 22 de maio de 2015

Fé remake, espiritualidade selfie: Religião Estética


Uma compreensão ou um diagnóstico crítico dos fenômenos religiosos atuais não é possível desconsiderando a Estética, e o estético. Não se trata, todavia, da Estética em seu sentido mais hodierno de cosmética, nem da significação acadêmica clássica de reflexão sobre o Belo e as Artes. Trata-se da Estética como âmbito mais amplo da sensibilidade e dos afetos, do estético como ordem de sentido que ultrapassa o limite que outrora lhe era imposto. É inegável que vivemos em tempos no qual tudo se submete ao estético. Isto é, vivemos um tempo de estetização, preponderando o império das imagens, a soberania da visibilidade ostentatória e a excitação ilimitada.
O campo passional é expandido para além da afetividade comum, torna-se, na verdade, alvo da panacéia midiática. Nesta, todos querem ser vistos, mas ninguém vê, pois todos se tornam “narcisos frágeis”, cujo eixo gravitacional é a visibilidade do próprio umbigo. O narciso mitológico satisfazia-se em ver a si mesmo, porém os narcisos contemporâneos nunca estão satisfeitos com sua própria imagem refletida. Os narcisos frágeis não querem contemplar a si mesmos solitariamente, mas querem que os outros os contemplem olhando para si: se ele só olha para si mesmo, os outros devem fazer o mesmo. O narcisismo mitológico não exigia espectadores, na atualidade os narcisos não querem ver, mas ser vistos. O narciso mitológico era belo, os narcisos contemporâneos são violentos e perversos. Nesse sentido, uma selfie não é somente uma inocente herança artística do auto-retrato gestado na pintura clássica, ela nunca é apenas um fenômeno estético. Uma vez que a estética submeteu os mais diversos âmbitos, toda selfie é também um gesto político. Vejam-se quantas selfies são feitas pelos celerados que compareceram nas últimas manifestações contra o governo na avenida paulista. Não importa tanto que estejam lá, mas que se veja que estão lá. Dos fascistas mais cheios de ódio que pedem intervenção militar aos analfabetos políticos que não sabem diferenciar esquerda e direita: todos fazem um número infindável de selfies. Se não são concordes nos discursos, estão unidos pelo mesmo gesto estético-político: apontar a câmera para si mesmo, fazendo da sua imagem uma visibilidade excitante.
O número de selfies é sempre diretamente proporcional ao nível de excitação. Há entre estes dois aspectos um círculo vicioso que satisfaz as imposições difusas do império das imagens, da soberania da visibilidade ostentatória e da excitação ilimitada. Logo, de certo modo, apontar a câmera para si mesmo é um gesto político que reproduz
o narcisismo individualista contemporâneo que desvaloriza a criação dos liames comuns, uma aversão a todo sentir coletivo. “Pode uma soma de individualista criar um espaço comum?” Indaga o pensador italiano Pietro Barcellona, criador do termo “narcisos frágeis” e “egoísmo maduro” para caracterizar o individualismo contemporâneo. Ora, se as mais diversas práticas hodiernas se orientam pela ordem estética da exacerbação imagética e da excitação ilimitada, o que ocorre quando os gestos religiosos, os ditos “atos de fé” reproduzem tais práticas?
Na cultura do sucesso permanece somente quem adquire visibilidade, quem se reduz à sua própria imagem ostentatória, quem excita a si mesmo e os outros se valendo dos meios dispostos pela mídia e pelo mundo virtual. Desse modo, nos mais diversos âmbitos todos são chamados a serem empreendedores da sua própria imagem: publicitários de si. Logo, se para permanecer é preciso unir visibilidade e excitação, ambas midiáticas, não resta outra coisa senão copiar o estabelecido. Neste caso, as Igrejas Neopentecostais, no lado protestante, e a Renovação Carismática, no lado católico, foram os primeiros empreendedores. Resultando disso uma liturgia da cópia, uma fé remake, que além de se adequar ao status quo das perversidades imagéticas, o reproduz, fundando-se na categoria sagrado. O autoproclamado reavivamento do espírito está envolto na soberania da visibilidade ostentatória e na excitação ilimitada.
Trata-se de um pentecostes midiático. São programas de TV, verdadeiros talk shows da fé, adorações que se satisfazem com a transmissão ao vivo do ato, “louvações” na madrugada que em nível de excitação não perdem em nada para as raves, já que acontecem nos mesmo horários, “louvores” que podem ser ouvidos mesmo quando se desliga o áudio do aparelho. Um nível de excitação que a mera repetição do tradicionalismo não pode oferecer. É preciso copiar, celebrar remakes do que aí está, pois, segundo se afirma, é uma exigência da nova forma de evangelizar. Ademais, conforme se repete: “evangelizar é preciso”, embora quase nunca se discuta com propriedade as formas de evangelização. Ora, na simbiose entre religião e estética, evangelizar tornou-se antes de tudo um ato de excitação: sociedade excitada, religião excitada. Aparecimento, portanto, de uma religião estética.
Em um mundo no qual o real tornou-se pesado de mais, o fardo não pode ser mais aliviado pelas formas de lazer tradicionais. É preciso manter-se anestesiado. Mas no caso da sensibilidade contemporânea o efeito anestético só ocorre quando a excitação
alcança um nível extradiornário. É necessário sentir exageradamente, para sentir infimamente. Quem quer sentir tudo, sempre e com a mesma intensidade, em verdade, não tem sensibilidade, uma vez que não reconhece mais a diferença entre ordinário e extraordinário. Um nível de excitação que faz com que o real apareça como ficção, ou seja, um nível de excitação que anestesia. Em tempos da amplitude do âmbito estético o efeito é o contrário do que se mostra na superfície: a estética não é mais que anestética.
Ora, para anestesiar bem é preciso apartar os laços comuns de pertença, afastar-se da concretude do real, reduzindo o sentir à mera disposição anímica individual e não mais como disposição coletiva. Isto faz a religião midiática, proporciona uma fé intimista, egoísta, descompromissada com qualquer transformação ou crítica da realidade social. Não poderia ser diferente, pois o real é sentido como ficção, e é próprio de toda ficção, bem sucedida, gerar no expectador o sentimento de que a ordem de sentido que se assiste não pode ser alterada. Os efeitos da anestética religiosa midiática não é um simples “ópio do povo”, uma vez que sua capacidade alucinógena tem efeitos mais fortes e duradouros do que o narcótico da papoula. Ademias, no “ópio do povo”, havia povo, ou seja, um sentir compartilhado, hoje há apenas narcisos frágeis que reproduzem a lógica perversa das idiossincrasias, que medem o mundo pelas visualizações de suas selfies, fazendo do real uma sucessão da visibilidade de auto-retrato de corpos sem carne.
Fran Alavina.

sábado, 4 de abril de 2015

Evangelho da Carne, ou Ressurreição: nossa dignidade está no Corpo



Não resta dúvida, no âmbito da cultura ocidental, que o cristianismo é a religião do corpo. Seja negando, relativizando ou exaltando, os cristãos fazem do corpo o objeto central de seu discurso. Do princípio ao fim da narrativa cristológica, nos mistérios que a religião cristã diz proclamar está o corpo: do nascimento à ressurreição, pois se vai do “verbo que se fez carne” ao “corpo glorioso”. O Deus encarnado do cristianismo jamais se reduz ao puro espírito, do contrário não seria mais que uma abstração, uma ideia vazia, imaginação amorfa. Longe disso, os primeiros cristãos, cujo testemunho mais imediato legaram-nos as narrativas evangélicas, proclamaram obstinadamente que: “(...) virão a glória de Deus”, (Jo, 1, 14). Todavia, só viram tal glória porque o “verbo se fez carne”, (Jo, 1, 14). Ora, toda visibilidade pressupõe um corpo. O prólogo de João aponta que a manifestação de Deus só se realiza no fazer-se carne. A consequência destas afirmativas não pode ser outra: o corpo é a condição de possibilidade do sagrado. Logo, o núcleo central da mensagem cristã ser o corpo. O cristianismo funda-se no corpo, e não se constituiria como tal se não fosse um discurso religioso sobre o corpo. A complexidade do cristianismo reproduz o enigma em que se transforma o corpo. Não seria justamente por se constituir como discurso sobre o corpo, que o cristianismo conseguiu alcançar os mais diversos âmbitos?
Ora, olvidando está problema não menos importante, o fato é que a experiência do cristianismo em suas origens está marcada por uma concepção singular do lugar do corpo no mundo. Para aqueles primeiros seguidores do Galileu, eles estiveram na presença de Deus, não porque estavam em oração nos templos, isto é, fora da vida doméstica comum, em um lugar e em um registro de tempo extraordinários. Estiveram na presença de Deus no registro comum do tempo e do espaço, na espontaneidade da vida cotidiana, ou seja, no âmbito ordinário, e não naquele extraordinário. O que há de mais ordinário e comum do que o corpo? Somos todos corpos. Desse modo, pode-se afirmar que a primeira igualdade experimentada pelos cristãos, lugar original no qual se gesta um discurso igualitário mais amplo, é a igualdade dos corpos. Todos somos corpos, e no cristianismo Deus também é tão corpo quanto nós. Poderia haver Deus mais próximo do que este que é um corpo? Assim, aqueles que eram os últimos de seu mundo puderam sentir o cheiro de Deus, ouvir sua voz, tocá-lo, comer e beber com ele. Estiveram com Deus, não porque haviam se transformado em espíritos, almas puras, seres desencarnados, porém porque estavam todos no mesmo nível: o do corpo; homem corpo, Deus corpo. Esta primeira experiência do cristianismo nascente impõe um paradoxo: se é mais espiritual, somente na medida em que se afirma o corpo em sua integralidade. Quanto mais corporal, mais espiritual. Mas de que corpo fala a experiência do cristianismo das origens?
Não se tratava de um corpo classista asséptico (como o dos nobres ricos e daqueles que frequentavam as cortes), nem de um corpo tratado como matéria impura, alvo das mais detalhadas prescrições ritualísticas (como o dos fariseus), mas sim corpo
de povo, corpo de povo pobre. Corpo que por ser corpo de povo pobre tem sua dignidade reduzida, pois forçado à cruel luta pela sobrevivência, sem direito ao lazer. Isto é, corpo ao qual é negado o descanso. É o corpo dos que não são mais que seus próprios corpos. É o corpo cansado dos que trabalham e não podem usufruir dos frutos do esforço de seus próprios corpos. É o corpo subnutrido, odorante, corpo que não é objeto de assepsia, nem de rituais de pureza, já que é considerado sempre aquém de um corpo digno. O corpo do povo pobre é corpo na sua espontaneidade mais imediata, é corpo que tem sede e fome: em suma, é o corpo das vicissitudes. É o corpo impuro e abjeto da mulher adúltera, alvo de apedrejamento; é o corpo dos coxos, que por serem considerados corpos defeituosos devem ser fadados à exclusão; é o corpo dos cegos, rebaixado a corpo sem luz, sem direção; isto é, rebaixado a corpo sem autonomia. É o corpo dos leprosos, desfeitos em sua dignidade por possuírem uma carne feia, fedorenta. Ora, o corpo de Jesus é tão corpo quanto o destes. Por isso, o Deus cristão é o Deus sofredor, o Deus que perece e morre simplesmente porque é um corpo. Tudo se dá pelo corpo e no corpo. Todo acontecer supõe uma disposição corporal, se não há corpo, nada há. Pois, o corpo é sempre um dar-se, dar-se no/ao mundo, dar-se aos seus, dar-se a quem se quer dar. Quem entrega com gratuidade o próprio corpo, não oferece somente um corpo, mas se oferece por inteiro: “isto é o meu corpo”, (Mc, 14, 22).
Sem sua singular concepção de corpo, o cristianismo nada mais é que uma abstração, uma religião amorfa, que por alienar o lugar central do corpo em suas origens, torna-se o discurso que demoniza o corpo e o submete ao império do espírito. Mas, nesta atitude está o esquecimento do paradoxo original: se é mais espiritual, somente na medida em que se afirma o corpo em sua integralidade. Quem nega seu próprio corpo, sua condição corporal, não nega apenas a si mesmo, mas nega o próprio Deus que também é corpo. Nisto reside o núcleo da escatologia cristã. Jesus faz de si mesmo um corpo sofredor, independentemente de tempo e lugar. Todo corpo sofredor é o corpo do próprio Cristo, pois em um corpo que sofre, está o sofrer de todo corpo. (Mt, 25, 31-46), “(...) tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber, eu era estrangeiro e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; doente, e me visitastes; na prisão e vistes a mim”. Corpo esfomeado, corpo sedento, corpo estranho, corpo abandonado ao relento, corpo enfermo, corpo cativo. A mensagem é muito clara: não é por meio de obras “espirituais”, mais por meio das obras “corporais” que se decide o mistério da salvação final. Não o que se faz ao espírito, mas o que se faz ao corpo: aí reside o núcleo da boa nova. O reino de Deus não é o reino dos espíritos puros, mas o reino no qual as necessidades dos corpos são satisfeitas. O lugar onde não há mais corpos sofredores.
Justamente na incompreensão da mensagem da igualdade e integralidade dos corpos, gesta-se o destino final do corpo do Cristo. O crucifixo é antes de qualquer coisa um corpo que agoniza. Corpo de carne dilacerada. Um corpo que se tornou abjeto, que se tornou imagem do escárnio. No corpo do crucificado há uma identificação total, pois ali está um corpo imerso na vicissitude ao qual todo corpo está exposto. Qualquer corpo pode ser carne dilacerada, pode-se tornar abjeto: simplesmente porque é corpo. Todos
os corpos partilham a mesma condição, assim estão expostos aos mesmos escárnios. O corpo do crucificado é o corpo que incomoda, por isso deve ser calado à força. Um corpo que deve ser morto para deixar de ser corpo. Corpo de povo pobre que ousou ser mais que a carne da sobrevivência. No mundo da imposição da regulação dos corpos, para todo corpo ousado não resta outro destino, senão: o escárnio, a abjeção e a morte violenta.
Porém, o cristianismo foi além de uma mensagem igualitária dos corpos. O corpo ousado do Cristo ousou uma vez mais. Ousou afirmar a supremacia do corpo sobre tudo, até mesmo sobre a morte, pois o que é a ressurreição senão a vitória do corpo e da carne? (Lc, 24, 39-41), “Olhai as minhas mãos e os meus pés: Sou eu mesmo. Tocai-me, olhai: um espírito não tem carne, nem ossos como vós vedes que eu tenho”. O corpo ousado que havia sido dilacerado, o corpo da carne rasgada, retorna. A identidade do Cristo está no seu corpo: “olhai as minhas mãos e os meus pés: Sou eu mesmo”. Ele não é nada além que seu próprio corpo, e como corpo volta aos seus. Não poderia ser diferente, o corpo não é só o lugar da sensibilidade, mas também o âmbito da afetividade. O afeto entre Jesus e os seus, é antes de qualquer coisa uma afeto corporal: “tocai, olhai”. Ele quase que está a implorar, como se dissesse: sintam-me, pois sou um corpo, não um espírito ou uma lembrança vaga de suas mentes. Esta experiência é a experiência do encontro dos corpos. Dos corpos que se encontraram e sofrem as mesmas vicissitudes. No carne do corpo se imprimem as memórias como marcas do tempo, do tempo do afeto e do desafeto.
Afeto sem corpo é afeto amorfo. A forma do afeto se dá no corpo, pela convivência comum dos corpos. Assim, a experiência da crucificação não foi apenas a experiência do corpo sofredor, mas a experiência da perda do objeto de afeto, que pode resultar no esquecimento do afeto. Desse modo, é necessário voltar para o corpo, pois do contrário corre-se o risco da perda total da afetividade, outrora mantida pela convivência comum dos corpos. É a necessidade do corpo, como lugar genético da afetividade, que faz com a mulher marcada pelo trauma da perda do corpo do amado, vá ao sepulcro. Seu afeto não se desfaz do corpo, por isso é preciso envolver o corpo do amado em carinho, cuidados e perfumes, (Jo 20, 1-3). No sepulcro, paradoxalmente o lugar resevado ao desaparecimento do corpo, se dá a experiência da ressurreição, isto é, o encontro dos corpos marcados pela afetividade comum. Ela encontra-se não com um corpo morto, mas com um corpo vivo. O corpo ousado do Cristo é insurgente. Como todo corpo, ele não cabe na regulação, na imposição. À imposição do escárnio e da abjeção, o corpo responde com a vida. Não resta alternativa: ser mais corpo, pois só se pode ser mais que corpo, quando se é corpo integralmente.
Por conseguinte, nestes tempos em que o corpo é objeto de preocupação quase patológica, onde tudo parece se reduzir ao corporal, é preciso reler o anúncio evangélico, fruto da experiência da ressurreição, pela perspectiva do corpo. A boa-nova deve ser lida como narrativa da carne, como discurso que se centra nos corpos e não como mensagem que se dirige ao “espírito”. Abre-se assim uma perspectiva libertadora, que não impõe aos corpos o império do espírito, não padroniza o uso dos prazeres, que
não regula os corpos considerados dissidentes, pois a mensagem de vida plena não se realiza sem que o corpo seja livre. Corpos que se dão livremente na afetividade cotidiana, como na experiência do cristianismo das origens. Aí reside o futuro da mensagem cristã, pois afinal, o que fizeram ao ousado corpo de Cristo, também não se faz aos corpos ousados de hoje?
Fran Alavina.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO PARA A CELEBRAÇÃO DO XLVIII DIA MUNDIAL DA PA


1º DE JANEIRO DE 2015
JÁ NÃO ESCRAVOS, MAS IRMÃOS
1. No início dum novo ano, que acolhemos como uma graça e um dom de Deus para a humanidade, desejo dirigir, a cada homem e mulher, bem como a todos os povos e nações do mundo, aos chefes de Estado e de Governo e aos responsáveis das várias religiões, os meus ardentes votos de paz, que acompanho com a minha oração a fim de que cessem as guerras, os conflitos e os inúmeros sofrimentos provocados quer pela mão do homem quer por velhas e novas epidemias e pelos efeitos devastadores das calamidades naturais. Rezo de modo particular para que, respondendo à nossa vocação comum de colaborar com Deus e com todas as pessoas de boa vontade para a promoção da concórdia e da paz no mundo, saibamos resistir à tentação de nos comportarmos de forma não digna da nossa humanidade. Já, na minha mensagem para o 1º de Janeiro passado, fazia notar que «o anseio duma vida plena (…) contém uma aspiração irreprimível de fraternidade, impelindo à comunhão com os outros, em quem não encontramos inimigos ou concorrentes, mas irmãos que devemos acolher e abraçar».[1] Sendo o homem um ser relacional, destinado a realizar-se no contexto de relações interpessoais inspiradas pela justiça e a caridade, é fundamental para o seu desenvolvimento que sejam reconhecidas e respeitadas a sua dignidade, liberdade e autonomia. Infelizmente, o flagelo generalizado da exploração do homem pelo homem fere gravemente a vida de comunhão e a vocação a tecer relações interpessoais marcadas pelo respeito, a justiça e a caridade. Tal fenômeno abominável, que leva a espezinhar os direitos fundamentais do outro e a aniquilar a sua liberdade e dignidade, assume múltiplas formas sobre as quais desejo deter-me, brevemente, para que, à luz da Palavra de Deus, possamos considerar todos os homens, «já não escravos, mas irmãos».
À escuta do projeto de Deus para a humanidade
2. O tema, que escolhi para esta mensagem, inspira-se na Carta de São Paulo a Filemon; nela, o Apóstolo pede ao seu colaborador para acolher Onésimo, que antes era escravo do próprio Filemon, mas agora tornou-se cristão, merecendo por isso mesmo, segundo Paulo, ser considerado um irmão. Escreve o Apóstolo dos gentios: «Ele foi afastado por breve tempo, a fim de que o recebas para sempre, não já como escravo, mas muito mais do que um escravo, como irmão querido» (Flm 15-16). Tornando-se cristão, Onésimo passou a ser irmão de Filemon. Deste modo, a conversão a Cristo, o início duma vida de discipulado em Cristo constitui um novo nascimento (cf. 2 Cor 5, 17; 1 Ped 1, 3), que regenera a fraternidade como vínculo fundante da vida familiar e alicerce da vida social.
Lemos, no livro do Genesis (cf. 1, 27-28), que Deus criou o ser humano como homem e mulher e abençoou-os para que crescessem e se multiplicassem: a Adão e Eva, fê-los pais, que, no cumprimento da bênção de Deus para ser fecundos e multiplicar-se, geraram a primeira fraternidade: a de Caim e Abel. Saídos do mesmo ventre, Caim e Abel são irmãos e, por isso, têm a mesma origem, natureza e dignidade de seus pais, criados à imagem e semelhança de Deus.
Mas, apesar de os irmãos estarem ligados por nascimento e possuírem a mesma natureza e a mesma dignidade, a fraternidade exprime também a multiplicidade e a diferença que existe entre eles. Por conseguinte, como irmãos e irmãs, todas as pessoas estão, por natureza, relacionadas umas com as outras, cada qual com a própria especificidade e todas partilhando a mesma origem, natureza e dignidade. Em virtude disso, a fraternidade constitui a rede de relações fundamentais para a construção da família humana criada por Deus.
Infelizmente, entre a primeira criação narrada no livro do Genesis e o novo nascimento em Cristo – que torna, os crentes, irmãos e irmãs do «primogênito de muitos irmãos» (Rom 8, 29) –, existe a realidade negativa do pecado, que interrompe tantas vezes a nossa fraternidade de criaturas e deforma continuamente a beleza e nobreza de sermos irmãos e irmãs da mesma família humana. Caim não só não suporta o seu irmão Abel, mas mata-o por inveja, cometendo o primeiro fratricídio. «O assassinato de Abel por Caim atesta, tragicamente, a rejeição radical da vocação a ser irmãos. A sua história (cf. Gen 4, 1-16) põe em evidência o difícil dever, a que todos os homens são chamados, de viver juntos, cuidando uns dos outros».[2]
Também na história da família de Noé e seus filhos (cf. Gen 9, 18-27), é a falta de piedade de Cam para com seu pai, Noé, que impele este a amaldiçoar o filho irreverente e a abençoar os outros que o tinham honrado, dando assim lugar a uma desigualdade entre irmãos nascidos do mesmo ventre.
Na narração das origens da família humana, o pecado de afastamento de Deus, da figura do pai e do irmão torna-se uma expressão da recusa da comunhão e traduz-se na cultura da servidão (cf. Gen 9, 25-27), com as consequências daí resultantes que se prolongam de geração em geração: rejeição do outro, maus-tratos às pessoas, violação da dignidade e dos direitos fundamentais, institucionalização de desigualdades. Daqui se vê a necessidade duma conversão contínua à Aliança levada à perfeição pela oblação de Cristo na cruz, confiantes de que, «onde abundou o pecado, superabundou a graça (…) por Jesus Cristo» (Rom 5, 20.21). Ele, o Filho amado (cf. Mt 3, 17), veio para revelar o amor do Pai pela humanidade. Todo aquele que escuta o Evangelho e acolhe o seu apelo à conversão, torna-se, para Jesus, «irmão, irmã e mãe» (Mt 12, 50) e, consequentemente, filho adotivo de seu Pai (cf. Ef 1, 5).
No entanto, os seres humanos não se tornam cristãos, filhos do Pai e irmãos em Cristo por imposição divina, isto é, sem o exercício da liberdade pessoal, sem se converterem livremente a Cristo. Ser filho de Deus requer que primeiro se abrace o imperativo da conversão: «Convertei-vos – dizia Pedro no dia de Pentecostes – e peça cada um o batismo em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos seus pecados; recebereis, então, o dom do Espírito Santo» (At 2, 38). Todos aqueles que responderam com a fé e
a vida àquela pregação de Pedro, entraram na fraternidade da primeira comunidade cristã (cf. 1 Ped 2, 17; At 1, 15.16; 6, 3; 15, 23): judeus e gregos, escravos e homens livres (cf. 1 Cor 12, 13; Gal 3, 28), cuja diversidade de origem e estado social não diminui a dignidade de cada um, nem exclui ninguém do povo de Deus. Por isso, a comunidade cristã é o lugar da comunhão vivida no amor entre os irmãos (cf. Rom 12, 10; 1 Tes 4, 9; Heb 13, 1; 1 Ped 1, 22; 2 Ped 1, 7).
Tudo isto prova como a Boa Nova de Jesus Cristo – por meio de Quem Deus «renova todas as coisas» (Ap 21, 5)[3] – é capaz de redimir também as relações entre os homens, incluindo a relação entre um escravo e o seu senhor, pondo em evidência aquilo que ambos têm em comum: a filiação adotiva e o vínculo de fraternidade em Cristo. O próprio Jesus disse aos seus discípulos: «Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (Jo 15, 15).
As múltiplas faces da escravatura, ontem e hoje
3. Desde tempos imemoriais, as diferentes sociedades humanas conhecem o fenómeno da sujeição do homem pelo homem. Houve períodos na história da humanidade em que a instituição da escravatura era geralmente admitida e regulamentada pelo direito. Este estabelecia quem nascia livre e quem, pelo contrário, nascia escravo, bem como as condições em que a pessoa, nascida livre, podia perder a sua liberdade ou recuperá-la. Por outras palavras, o próprio direito admitia que algumas pessoas podiam ou deviam ser consideradas propriedade de outra pessoa, a qual podia dispor livremente delas; o escravo podia ser vendido e comprado, cedido e adquirido como se fosse uma mercadoria qualquer.
Hoje, na sequência duma evolução positiva da consciência da humanidade, a escravatura – delito de lesa humanidade[4] – foi formalmente abolida no mundo. O direito de cada pessoa não ser mantida em estado de escravidão ou servidão foi reconhecido, no direito internacional, como norma inderrogável.
Mas, apesar de a comunidade internacional ter adotado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este fenômeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições semelhantes às da escravatura.
Penso em tantos trabalhadores e trabalhadoras, mesmo menores, escravizados nos mais diversos sectores, a nível formal e informal, desde o trabalho doméstico ao trabalho agrícola, da indústria manufatureira à mineração, tanto nos países onde a legislação do trabalho não está conforme às normas e padrões mínimos internacionais, como – ainda que ilegalmente – naqueles cuja legislação protege o trabalhador.
Penso também nas condições de vida de muitos migrantes que, ao longo do seu trajeto dramático, padecem a fome, são privados da liberdade, despojados dos seus bens ou abusados física e sexualmente. Penso em tantos deles que, chegados ao destino depois duma viagem duríssima e dominada pelo medo e a insegurança, ficam
detidos em condições às vezes desumanas. Penso em tantos deles que diversas circunstâncias sociais, políticas e econômicas impelem a passar à clandestinidade, e naqueles que, para permanecer na legalidade, aceitam viver e trabalhar em condições indignas, especialmente quando as legislações nacionais criam ou permitem uma dependência estrutural do trabalhador migrante em relação ao dador de trabalho como, por exemplo, condicionando a legalidade da estadia ao contrato de trabalho... Sim! Penso no «trabalho escravo».
Penso nas pessoas obrigadas a prostituírem-se, entre as quais se contam muitos menores, e nas escravas e escravos sexuais; nas mulheres forçadas a casar-se, quer as que são vendidas para casamento quer as que são deixadas em sucessão a um familiar por morte do marido, sem que tenham o direito de dar ou não o próprio consentimento.
Não posso deixar de pensar a quantos, menores e adultos, são objeto de tráfico e comercialização para remoção de órgãos, para ser recrutados como soldados, para servir de pedintes, para atividades ilegais como a produção ou venda de drogas, ou para formas disfarçadas de adoção internacional.
Penso, enfim, em todos aqueles que são raptados e mantidos em cativeiro por grupos terroristas, servindo os seus objetivos como combatentes ou, especialmente no que diz respeito às meninas e mulheres, como escravas sexuais. Muitos deles desaparecem, alguns são vendidos várias vezes, torturados, mutilados ou mortos.
Algumas causas profundas da escravatura
4. Hoje como ontem, na raiz da escravatura, está uma concepção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como um objeto. Quando o pecado corrompe o coração do homem e o afasta do seu Criador e dos seus semelhantes, estes deixam de ser sentidos como seres de igual dignidade, como irmãos e irmãs em humanidade, passando a ser vistos como objetos. Com a força, o engano, a coação física ou psicológica, a pessoa humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada, reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim.
Juntamente com esta causa ontológica – a rejeição da humanidade no outro –, há outras causas que concorrem para se explicar as formas atuais de escravatura. Entre elas, penso em primeiro lugar na pobreza, no subdesenvolvimento e na exclusão, especialmente quando os três se aliam com a falta de acesso à educação ou com uma realidade caracterizada por escassas, se não mesmo inexistentes, oportunidades de emprego. Não raro, as vítimas de tráfico e servidão são pessoas que procuravam uma forma de sair da condição de pobreza extrema e, dando crédito a falsas promessas de trabalho, caíram nas mãos das redes criminosas que gerem o tráfico de seres humanos. Estas redes utilizam habilmente as tecnologias informáticas modernas para atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo.
Entre as causas da escravatura, deve ser incluída também a corrupção daqueles que, para enriquecer, estão dispostos a tudo. Na realidade, a servidão e o tráfico das
pessoas humanas requerem uma cumplicidade que muitas vezes passa através da corrupção dos intermediários, de alguns membros das forças da polícia, de outros atores do Estado ou de variadas instituições, civis e militares. «Isto acontece quando, no centro de um sistema econômico, está o deus dinheiro, e não o homem, a pessoa humana. Sim, no centro de cada sistema social ou econômico, deve estar a pessoa, imagem de Deus, criada para que fosse o dominador do universo. Quando a pessoa é deslocada e chega o deus dinheiro, dá-se esta inversão de valores».[5]
Outras causas da escravidão são os conflitos armados, as violências, a criminalidade e o terrorismo. Há inúmeras pessoas raptadas para ser vendidas, recrutadas como combatentes ou exploradas sexualmente, enquanto outras se vêem obrigadas a emigrar, deixando tudo o que possuem: terra, casa, propriedades e mesmo os familiares. Estas últimas, impelidas a procurar uma alternativa a tão terríveis condições, mesmo à custa da própria dignidade e sobrevivência, arriscam-se assim a entrar naquele círculo vicioso que as torna presa da miséria, da corrupção e das suas consequências perniciosas.
Um compromisso comum para vencer a escravatura
5. Quando se observa o fenômeno do comércio de pessoas, do tráfico ilegal de migrantes e de outras faces conhecidas e desconhecidas da escravidão, fica-se frequentemente com a impressão de que o mesmo tem lugar no meio da indiferença geral.
Sem negar que isto seja, infelizmente, verdade em grande parte, apraz-me mencionar o enorme trabalho que muitas congregações religiosas, especialmente femininas, realizam silenciosamente, há tantos anos, a favor das vítimas. Tais institutos actuam em contextos difíceis, por vezes dominados pela violência, procurando quebrar as cadeias invisíveis que mantêm as vítimas presas aos seus traficantes e exploradores; cadeias, cujos elos são feitos não só de subtis mecanismos psicológicos que tornam as vítimas dependentes dos seus algozes, através de chantagem e ameaça a eles e aos seus entes queridos, mas também através de meios materiais, como a apreensão dos documentos de identidade e a violência física. A atividade das congregações religiosas está articulada a três níveis principais: o socorro às vítimas, a sua reabilitação sob o perfil psicológico e formativo e a sua reintegração na sociedade de destino ou de origem.
Este trabalho imenso, que requer coragem, paciência e perseverança, merece o aplauso da Igreja inteira e da sociedade. Naturalmente o aplauso, por si só, não basta para se pôr termo ao flagelo da exploração da pessoa humana. Faz falta também um tríplice empenho a nível institucional: prevenção, proteção das vítimas e ação judicial contra os responsáveis. Além disso, assim como as organizações criminosas usam redes globais para alcançar os seus objetivos, assim também a ação para vencer este fenômeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos diferentes atores que compõem a sociedade.
Os Estados deveriam vigiar por que as respectivas legislações nacionais sobre as migrações, o trabalho, as adoções, a transferência das empresas e a comercialização de produtos feitos por meio da exploração do trabalho sejam efetivamente respeitadoras da dignidade da pessoa. São necessárias leis justas, centradas na pessoa humana, que defendam os seus direitos fundamentais e, se violados, os recuperem reabilitando quem é vítima e assegurando a sua incolumidade, como são necessários também mecanismos eficazes de controle da correta aplicação de tais normas, que não deixem espaço à corrupção e à impunidade. É preciso ainda que seja reconhecido o papel da mulher na sociedade, intervindo também no plano cultural e da comunicação para se obter os resultados esperados.
As organizações intergovernamentais são chamadas, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, a implementar iniciativas coordenadas para combater as redes transnacionais do crime organizado que gerem o mercado de pessoas humanas e o tráfico ilegal dos migrantes. Torna-se necessária uma cooperação a vários níveis, que englobe as instituições nacionais e internacionais, bem como as organizações da sociedade civil e do mundo empresarial. Com efeito, as empresas[6] têm o dever não só de garantir aos seus empregados condições de trabalho dignas e salários adequados, mas também de vigiar por que não tenham lugar, nas cadeias de distribuição, formas de servidão ou tráfico de pessoas humanas. A par da responsabilidade social da empresa, aparece depois a responsabilidade social do consumidor. Na realidade, cada pessoa deveria ter consciência de que «comprar é sempre um ato moral, para além de econômico».[7]
As organizações da sociedade civil, por sua vez, têm o dever de sensibilizar e estimular as consciências sobre os passos necessários para combater e erradicar a cultura da servidão.
Nos últimos anos, a Santa Sé, acolhendo o grito de sofrimento das vítimas do tráfico e a voz das congregações religiosas que as acompanham rumo à libertação, multiplicou os apelos à comunidade internacional pedindo que os diversos atores unam os seus esforços e cooperem para acabar com este flagelo.[8] Além disso, foram organizados alguns encontros com a finalidade de dar visibilidade ao fenômeno do tráfico de pessoas e facilitar a colaboração entre os diferentes atores, incluindo peritos do mundo acadêmico e das organizações internacionais, forças da polícia dos diferentes países de origem, trânsito e destino dos migrantes, e representantes dos grupos eclesiais comprometidos em favor das vítimas. Espero que este empenho continue e se reforce nos próximos anos.
Globalizar a fraternidade,
não a escravidão nem a indiferença 6. Na sua atividade de «proclamação da verdade do amor de Cristo na sociedade»,[9] a Igreja não cessa de se empenhar em ações de caráter caritativo guiada pela verdade sobre o homem. Ela tem o dever de mostrar a todos o caminho da conversão, que induz a voltar os olhos para o próximo, a ver no outro – seja ele quem for – um irmão e
uma irmã em humanidade, a reconhecer a sua dignidade intrínseca na verdade e na liberdade, como nos ensina a história de Josefina Bakhita, a Santa originária da região do Darfur, no Sudão. Raptada por traficantes de escravos e vendida a patrões desalmados desde a idade de nove anos, haveria de tornar-se, depois de dolorosas vicissitudes, «uma livre filha de Deus» mediante a fé vivida na consagração religiosa e no serviço aos outros, especialmente aos pequenos e fracos. Esta Santa, que viveu a cavalo entre os séculos XIX e XX, é também hoje testemunha exemplar de esperança[10] para as numerosas vítimas da escravatura e pode apoiar os esforços de quantos se dedicam à luta contra esta «ferida no corpo da humanidade contemporânea, uma chaga na carne de Cristo».[11]
Nesta perspectiva, desejo convidar cada um, segundo a respectiva missão e responsabilidades particulares, a realizar gestos de fraternidade a bem de quantos são mantidos em estado de servidão. Perguntemo-nos, enquanto comunidade e indivíduo, como nos sentimos interpelados quando, na vida quotidiana, nos encontramos ou lidamos com pessoas que poderiam ser vítimas do tráfico de seres humanos ou, quando temos de comprar, se escolhemos produtos que poderiam razoavelmente resultar da exploração de outras pessoas. Há alguns de nós que, por indiferença, porque distraídos com as preocupações diárias, ou por razões económicas, fecham os olhos. Outros, pelo contrário, optam por fazer algo de positivo, comprometendo-se nas associações da sociedade civil ou praticando no dia-a-dia pequenos gestos como dirigir uma palavra, trocar um cumprimento, dizer «bom dia» ou oferecer um sorriso; estes gestos, que têm imenso valor e não nos custam nada, podem dar esperança, abrir estradas, mudar a vida a uma pessoa que tateia na invisibilidade e mudar também a nossa vida face a esta realidade.
Temos de reconhecer que estamos perante um fenômeno mundial que excede as competências de uma única comunidade ou nação. Para vencê-lo, é preciso uma mobilização de dimensões comparáveis às do próprio fenômeno. Por esta razão, lanço um veemente apelo a todos os homens e mulheres de boa vontade e a quantos, mesmo nos mais altos níveis das instituições, são testemunhas, de perto ou de longe, do flagelo da escravidão contemporânea, para que não se tornem cúmplices deste mal, não afastem o olhar à vista dos sofrimentos de seus irmãos e irmãs em humanidade, privados de liberdade e dignidade, mas tenham a coragem de tocar a carne sofredora de Cristo,[12] o Qual Se torna visível através dos rostos inumeráveis daqueles a quem Ele mesmo chama os «meus irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40.45).
Sabemos que Deus perguntará a cada um de nós: Que fizeste do teu irmão? (cf. Gen 4, 9-10). A globalização da indiferença, que hoje pesa sobre a vida de tantas irmãs e de tantos irmãos, requer de todos nós que nos façamos artífices duma globalização da solidariedade e da fraternidade que possa devolver-lhes a esperança e levá-los a retomar, com coragem, o caminho através dos problemas do nosso tempo e as novas perspectivas que este traz consigo e que Deus coloca nas nossas mãos.
Vaticano, 8 de Dezembro de 2014.
FRANCISCUS
NOTAS
[1] N. 1. [2] Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2014, 2. [3] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 11. [4] Cf. Discurso à Delegação internacional da Associação de Direito Penal (23 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 30/X/2014), 9. [5] Discurso aos participantes no Encontro mundial dos Movimentos Populares (28 de Outubro de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 06/XI/2014), 9. [6] Cf. Pontifício Conselho «Justiça e Paz», La vocazione del leader d’impresa. Una riflessione (Milão e Roma, 2013). [7] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 66. [8] Cf. Mensagem ao Senhor Guy Rydes, Director-Geral da Organização Internacional do Trabalho, por ocasião da 103ª sessão da Conferência da O.I.T. (22 de Maio de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 05/VI/2014), 7. [9] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate, 5. [10] «Mediante o conhecimento desta esperança, ela estava “redimida”, já não se sentia escrava, mas uma livre filha de Deus. Entendia aquilo que Paulo queria dizer quando lembrava aos Efésios que, antes, estavam sem esperança e sem Deus no mundo: sem esperança porque sem Deus» ( Bento XVI, Carta enc. Spe salvi, 3). [11] Discurso aos participantes na II Conferência Internacional « Combating Human Trafficking: Church and Law Enforcement in partnership» (10 de Abril de 2014): L’Osservatore Romano (ed. portuguesa de 17/IV/2014), 8; cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 270. [12] Cf. Exort. ap. Evangelii gaudium, 24; 270.