artigo de
João Batista Herkenhof
Fui a Brasília receber a Comenda de Direitos Humanos Dom Hélder
Câmara mas não é sobre o recebimento da homenagem que desejo falar.
Tivesse sido agraciado com uma comenda conferida pelo Senado, este
fato por si só me alegraria pois o Senado é uma casa republicana.
A essa primeira alegria teria de acrescer o regozijo de receber o
prêmio ao lado de Dom José Maria Pires, Dom Paulo Evaristo Arns,
procurador da República Felício Pontes Júnior e líder camponês Manuel da
Conceição Santos.
Estas duas alegrias, não obstante intensas, são alegrias humanas. Há
uma terceira alegria que não é humana, pois transcende a tudo que é
humano. Esta alegria, que se localiza nos páramos divinos, é a alegria
de ter recebido uma comenda santificada pelo nome de Dom Hélder Câmara. É
sobre Dom Hélder que desejo discorrer.
Da mesma forma que fizeram os outros homenageados, usei da palavra para agradecer.
Na oportunidade do agradecimento, achei que seria apropriado narrar como foi meu ultimo encontro com Dom Hélder Câmara.
Aconteceu no Recife, em 1997, dois anos antes da partida do Profeta. O
cenário desse encontro derradeiro foi a modesta casa onde Dom Hélder
morava. Como se sabe, ele vendeu o suntuoso palácio, que era a
residência dos bispos. Aplicou o dinheiro para construir casas para os
pobres, e foi parar na periferia, a fim de viver na companhia dos
humildes, do jeito que os humildes vivem.
A primeira coisa que observei, ao chegar, foi a completa desproteção
da casa. Disse-lhe: Dom Hélder, as coisas que o senhor fala não agradam
os poderosos. Fácil, fácil, o senhor pode ser assassinado aqui. Ele
respondeu com um gesto e uma frase. Curvou a cabeça e disse: está vendo
estes fios de cabelo que restam? Não cai um único sem que Deus permita.
Conto-lhe que durante o período em que seu nome não podia ser
mencionado no rádio, na televisão, no jornal, eu havia “furado” o
bloqueio, no jornal “A Ordem”, de São José do Calçado, interior do
Espírito Santo. Eu era então Juiz da Comarca. Na edição de 4 de agosto
de 1969, publiquei um artigo com um título bem cândido: “Reflexões após
um período de férias”. No miolo do texto havia cinco parágrafos em sua
defesa.
Quem conhece a sociologia das cidades do interior sabe que, na
arquitetura do poder local, jamais o redator-chefe de um jornal
censuraria um artigo do Juiz de Direito da Comarca, ainda que tendo na
mesa do jornal, como era o caso, ordens expressas de escalões federais
proibindo referências a Dom Hélder.
Ele achou muito engraçado o episódio e finalizou: você deu uma rasteira na censura.
*(João Baptista Herkenhoff, magistrado aposentado, é professor da
Faculdade Estácio de Sá de Vila Velha (ES), palestrante e escritor.
Autor do livro: Filosofia do Direito (GZ Editora, Rio de Janeiro)