Tomada de posição teológica
contra uma nova “medievalização” da cultura católica
O livro dos Atos dos Apóstolos nos conta que o grande missionário Paulo de Tarso ficou revoltado ao encontrar, perambulando por Atenas, a cidade cheia de imagens sagradas. Sinto algo bem parecido quando passo frente à igreja de N.Sra. de Fátima (Av.13 de Maio), à igreja de Santa Edwiges (Av.Leste-Oeste), à igreja de N.Sra. da Saúde (Av.Abolição), ao santuário de N.Sra. da Assunção ou à igreja de N.Sra. da Imaculada Conceição (Pacatuba), onde foram erguidas, nos últimos anos, colossais estátuas em homenagem às respectivas “santas” (a lista não pretende ser completa...). Não se trata só do fato de que a veneração a imagens religiosas esteja crescendo novamente no catolicismo atual; é que ela está conquistando os logradouros públicos, no que constitui uma atitude invasiva de desrespeito aos concidadãos de outras orientações religiosas. O que está acontecendo na nossa Cidade e na nossa Igreja? Que onda é essa, agora???
Separemos, inicialmente, o aspecto laico-cívico da questão do ulterior problema teológico-espiritual.
Civicamente falando, o espaço público (praças, ruas, prédios administrativos) se destina ao usufruto de toda a população, sem que sofra constrangimento de qualquer espécie, a não ser pelo respeito à liberdade alheia. Certamente, nada impede o gestor público liberar avenidas e ruas para uma “Caminhada com Maria” (iniciativa católica) atravessar, uma vez ao ano, a cidade, contanto que a “Caminhada com Jesus” (iniciativa evangélica) ou a “Festa de Iemanja” (iniciativa umbandista na Praia do Futuro) lograrem o mesmo direito. Porém, a conivência (ou até parceria) de uma administração municipal com a ocupação permanente de um espaço de domínio público por uma igreja particular, através de monumento que possa transformar-se em objeto de culto, é inadmissível.
Contudo, pode haver controvérsias. Defensores políticos e religiosos deste abuso alegam tratar-se: (a) de uma expressão da democracia (“quem manda é o povo”), ou seja, como a maioria dos cidadãos fortalezenses é de fé católica, nada mais justo do que a cultura desta maioria predominar no visual da cidade; (b) de um investimento em atrações para o turismo religioso e/ou peregrinações populares, algo que traria movimento econômico ao município (ao bairro) e desta forma beneficiaria a todos os cidadãos; (c) de um embelezamento estético-artístico do logradouro, e não de objetos de veneração religiosa. O que dizer destes argumentos?
(A) O argumento se sustentaria em um regime de cristandade, mas de maneira alguma em um regime em que Estado e Religião estão separados. Quem manda em uma democracia como a nossa, é a Constituição Federal (que se supõe ser expressão da “vontade geral”; caso não seja mais, faça-se uma reforma constitucional). Onde a multidão ganhar “no grito”, sobrepondo sua vontade espontânea e inconstante às leis estabelecidas, vive-se em uma oclocracia. Monumentos católicos históricos que ocupam logradouros públicos em diversas metrópoles do Brasil ou nomes de santos que designam as próprias cidades (São Paulo, São Luís etc.) se explicam a partir de um passado em que “Trono e Altar” estiveram unidos, para mútuo benefício ideológico-político. Não se trata de abolir ou mudar tal legado histórico que pertence ao patrimônio nacional, mas é preciso reconhecer que o regime de cristandade era nefasto tanto para a autonomia do Estado quanto para a liberdade da Igreja, além de se mostrar extremamente intolerante às manifestações públicas de outras religiões. Não se pode ter, de sã consciência, saudade de um tempo em que o Estado Brasileiro apadrinhava e fomentava a cultura católica! Só o pacto entre o presidente Vargas e o cardeal Sebastião Leme explica a inauguração do Cristo Redentor (12-10-1931), na então capital Rio de Janeiro – no fundo, já um anacronismo e atentado ao Estado laico. – Esta minha crítica, aliás, não deve ser confundida com uma defesa do laicismo, doutrina segunda a qual religião alguma poderia manifestar-se em espaço público e sobre assuntos de interesse coletivo, devendo-se restringir unicamente à privacidade do lar. Em um regime democrático, não se vê porque representantes das diversas tradições religiosas não possam fazer ouvir suas vozes, articulando – com todo o respeito às convicções dos demais – os valores que, em sua opinião, deveriam reger o convívio social. Defender a colocação de crucifixos e estátuas de “Nossa Senhora” (sic!) em escolas e hospitais públicos, em parlamentos e praças é algo inteiramente diferente.
(B) É plenamente imaginável um lojista protestante, em Juazeiro do Norte ou Canindé, “aturando” o que deve considerar “idolatria católica”, enquanto cogita a vantagem econômica que o afluxo de romeiros traz ao seu estabelecimento comercial. A “receita” do desenvolvimento econômico de um município a partir de sua vocação ao turismo religioso está funcionando também alhures. Não obstante, são casos em que a preocupação econômica se sobrepõe a considerações legais e até mesmo de ética política, arriscando-se pela inconstitucionalidade.
(C) Me desculpem os que pensam diferente e os próprios escultores, mas o valor artístico de tais imagens de “santas” é, invariavelmente, pífio (sim, sobre gosto se discute, pelo menos quando se trata de monumento público; o mau gosto pode permanecer incólume quando atua no próprio lar). E não é verdade que as imagens não virem objetos de culto: Em várias dessas praças, ao redor da imagem, já foram registradas reuniões de adeptos do Terço, entoando hinos, confundindo espaço público de lazer e recreação com lugar litúrgico. Um exemplo concreto: Em um canto da Praça Alan Neto, no Papicu, um grupo de senhoras mandou erguer uma pequena gruta, contendo imagem de Maria, diante da qual costuma realizar atividades devocionais – usurpando, porque privatizando, o que deveria ser de domínio coletivo. Quem pretende ser católico, deveria provar ter, em primeiro lugar, espírito cívico...
Procedamos agora à avaliação teológica da questão.
Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que não apoio nenhum tipo de iconoclasmo (= destruição de imagens). Acolho, de bom grado, a distinção conceitual entre proskynésis (veneração lícita) e latréia (adoração ilícita) das imagens na liturgia, operada em 787 d.C. pelo concílio geral de Nicéia. Mais próximo ainda me considero da posição do papa Gregório Magno que, por volta de 600 d.C., interpretou relíquias e imagens como “Bíblia dos Pobres” e analfabetos, cuja religiosidade arcaica se acende diante do palpável e concreto (cf. em Ex 32 as pressões que Aarão sofreu do povo hebreu, diante do Monte Sinai, que lhe pedia uma imagem esculpida). Gregório entendia a função das imagens vinculada, antes, à necessidade catequética em condições rudimentares, portanto, ao aspecto didático da instrução cristã, não tanto ao âmbito do litúrgico.
A partir dessa compreensão, justifica-se a tolerância, por parte de pastores e teólogos, diante das devoções populares de que são alvos, desde os tempos medievais, as imagens dos santos, seguidas e carregadas por multidões. Injustificável, porém, é uma estratégia eclesiástica que, dispondo hoje em dia dos meios materiais e da qualidade espiritual para fazer os fiéis progredirem em sua compreensão da fé, prefere, no entanto, promover ativamente uma cultura católica tosca da materialização ostensiva do sagrado. Torna-se passível da mais contundente reprovação o temor das autoridades eclesiásticas de que a secularização progressiva da sociedade hodierna termine por eliminar, de todo, os símbolos da antiga hegemonia cultural católica. Lutar para manter ou reaver o domínio cultural da cena pública brasileira não significa evangelizar! Afirmar, através da multiplicação de símbolos notórios da tradição católica em lugares públicos, a onipresença da Igreja, não é uma forma válida de anunciar a Boa Notícia de Jesus, já que se trata de uma auto-afirmação que segrega, constrange, fere direitos. Evangelizar seria fermentar a sociedade contemporânea com exemplos de generosidade gratuita, tolerância diante da alteridade, aceitação incondicional do outro enquanto outro no grande Amor que brilha como o sol sobre os justos e injustos (Mt 5,45).
Francamente, não sei o que tem na cabeça de muitos presbíteros e bispos que incentivam a construção de imagens. Para que estudaram Teologia? Bíblia? História do Cristianismo? Certamente, não pode ter sido para se comportarem como oportunistas e populistas que dão ao “povo” o que o povo pede – pão, circo e imagens – só para melhor controlá-lo! Quem disse que a voz do povo é a voz de Deus? “A quem muito foi dado, muito será cobrado!” e “Cada um veja como constrói!” Não haveria projetos mais nobres em que o dinheiro dos fiéis possa ser empregado? Por que os párocos se engajam tanto em construções materiais – alguns parecem verdadeiros arquitetos e designers! – e tão pouco na construção de uma mentalidade sadia e esclarecida? Por que tanto investimento em cerimônias solenes, liturgias pomposas e efeitos especiais na decoração de suas igrejas, ou seja, na exterioridade – tudo aquilo de que Jesus quis nos prevenir no Sermão da Montanha! – e tão pouco incentivo à pastoral social e quase nenhuma inserção em meio aos pobres?
Acredito que outro catolicismo seja possível: esclarecido, do ponto de vista da ciência moderna, engajado e transformador, do ponto de vista sócio-político, libertador, do ponto de vista existencial e amadurecido, do ponto de vista do equilíbrio psíquico. Esforcemo-nos para testemunhá-lo. Cumpre terminar esta denúncia da maneira como a começamos, isto é, com as palavras do apóstolo no areópago ateniense, vertidas em advertência à nossa “geração má e adúltera”: “O Deus que fez o mundo e tudo o que nele existe [...] não habita em templos feitos por mãos humanas. Também não é servido por mãos humanas, como se precisasse de alguma coisa, ele que a todos dá vida, respiração e tudo o mais. [...] Pois, nele vivemos, nos movemos e existimos [...]. Não podemos pensar que a divindade seja semelhante ao ouro, à prata, ou à pedra, a uma escultura da arte e engenho humanos” (At 17,24-25.28-29). Pois, já deixamos para trás “os tempos da ignorância” (At 17,30). Assim seja.
Carlo Tursi, teólogo católico,
Membro de “O GRUPO”, da Coordenação Arquidiocesana de CEBs e do Movimento por uma Formação Cristã Libertadora
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