quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Ratzinger foi o primeiro papa argentino?

Desde o dia 10 de fevereiro, quando sua renúncia caiu como um raio sobre a aristocracia vaticana, o Papa Bento XVI confirmou ser um político imprevisível e intrinsecamente alemão. Este homem nascido na Baviera há 85 anos, fisicamente debilitado e intelectualmente lúcido, deixará quinta-feira (28) a chefia da Igreja de uma forma sem precedentes na história moderna, o que não chegou a surpreender alguns vaticanólogos (uma especialidade muito cultivada na imprensa da Itália) que acompanham há muitas décadas seu método de trabalho e as premissas geopolíticas sobre as quais guiou seu trabalho como cardeal e papa, em particular na relação com a América Latina. Em várias análises dos citados “vaticanólogos” pode-se ler que o chefe de Estado demissionário é um homem de poder, agarrado a um projeto que espera poder perpetuar para além de sua saída e esta é a razão última de seu afastamento antecipado: permanecer como o grande eleitor de seu sucessor.

Joseph Ratzinger pode ser considerado como o arquiteto de uma revisão doutrinária extremista no Vaticano, iniciada muito antes de sua consagração como Papa em abril de 2005, mas sim a partir de sua indicação como prefeito da Sagrada Congregação da Doutrina da Fé, em 1981. A partir daí, com racionalidade germânica, Ratzinger foi desmontando peça por peça o que havia sido construído durante quase duas décadas na igreja latino-americana desde o Concílio Vaticano II, por meio das Conferências Episcopais de Medellin, em 1968, e de Puebla, em 1979, à luz do trabalho de um bispado cada vez mais sensível frente a exclusão de centenas de milhões de católicos do continente. O cardeal bávaro caracterizou esse essa corrente católica de crescente penetração popular como a transposição automática à prática evangélica das teses da Teologia da Libertação, concebidas pelo bispo peruano Gustavo Gutiérrez e enriquecidas por um de seus teóricos posteriores, o ex-frei franciscano Leonardo Boff, doutorado na Alemanha.

Devido à sua erudição eurocentrista, o ex-arcebispo de Munique Ratzinger não foi capaz de distinguir entre a Teologia da Libertação, certamente acolhida por uma parte dos clérigos mas sem chegar a ser uma maioria, e o conjunto dessa igreja latino-americana popular é pós-concílio, onde não existe uma homogeneidade ideológica férrea, ainda que houvesse sim uma disseminada opção preferencial pelos pobres. É errado sustentar que eram teólogos marxistas dois mártires como foram o arcebispo de El Salvador Amulfo Romero, assassinado por paramilitares enquanto celebrava uma missa em março de 1980, ou o arcebispo argentino Angelelli, vítima de um atentado durante a ditadura militar, em agosto de 1976. Dois assassinatos, não os únicos, que a Cúria Romana ignorou.

A indiferença do Vaticano ante esses crimes desnuda sua cumplicidade por omissão e sua percepção atrofiada da religiosidade popular na América Latina, assimilando de maneira simplista o trabalho missionário com o proselitismo político. Esta atrofia ideológica, arrastada desde a Guerra Fria, impregnou igualmente os papados do polonês João Paulo II e do alemão Bento XVI, este último guiado por um fundamentalismo opressor das individualidades das igrejas nativas.

Nos anos 90, a fúria vaticana, como Ratzinger como o homem forte da Cúria, recaiu sobre Dom Samuel Ruiz Garcia, bispo de San Cristóbal de las Casas, Chiapas, por seu compromisso com as demandas indígenas e o sincretismo entre catolicismo e cultos dos povos originários. Após algumas sanções canônicas, Dom Samuel teve que deixar o cargo exatamente ao cumprir 75 anos, nem um dia a mais, em outro sinal de desgosto com o qual o Vaticano recebeu seu apoio à rebelião do Exército Zapatista de Libertação Nacional.

Para medir o desatino sociológico e antropológico dessa perspectiva míope que marcou estes anos de poder alemão na Santa Sé pode-se citar a deserção de dezenas de milhões de católicos brasileiros, argentinos, peruanos e centroamericanos que foram engrossar o rebanho pentecostal. Um fenômeno menos pronunciado no caso do México, onde o fervor católico parece resistir até às forças destrutivas do Vaticano.

Neste afã de expurgar aos que considerou como impuros por questionar o celibato, a proibição dos preservativos e defender maior peso das igrejas locais na nomeação dos bispos, Ratzinger escolheu como uma de suas metas cruciais a desconstrução e “reorientação” da Conferência Nacional de Bispos do Brasil. Um trabalho iniciado em 1984, por meio da perseguição, apresentada como questionamento canônico, de Leonardo Boff, com o que materializava uma advertência à CNBB e à arquidiocese de São Paulo, cujo titular, Dom Paulo Evaristo Arns, tinha então o freio como conselheiro teológico.

Dom Paulo era o cardeal sulamericano que encarnava ao mesmo tempo a luta contra o regime militar brasileiro e havia convertido sua arquidiocese, a maior do subcontinente, em refúgio dos militantes perseguidos pelas ditaduras argentina, chilena e uruguaia. “O arcebispo Arns foi extraordinário conosco, uma pessoa na qual os perseguidos políticos podiam encontrar a solidariedade que nos foi negada pela hierarquia católica argentina”, disse a Carta Maior, desde Buenos Aires, Dora Salas, uma militante que fugiu de seu país nos anos 70, logo depois da desaparição de seu marido.

Em 2006, ao se cumprirem 30 anos do golpe que instalou o general Jorge Videla na Casa Rosada, o governo do então presidente Néstor Kirchner lamentou não poder reivindicar a memória de nenhum dos cardeais de seu país durante os anos de chumbo e, em troca, prestou homenagem ao arcebispo emérito Arns.

Há sete anos, na véspera do 24 de março, data da sublevação golpista, o embaixador argentino Juan Pablo Lohlé viajou até São Paulo para condecorar o arcebispo emérito com a Ordem do Libertador José de San Martín, em uma cerimônia onde velhos militantes e antigos membros da organização humanitária Clamor (que trabalhou lado a lado com a Arquidiocese de São Paulo), me contaram seus enfrentamentos com a cúria argentina, sempre muito obsequiosa frente os generais e desinteressada em matéria de Direitos Humanos.

Em razão de sua solidariedade com os exilados argentinos e as denúncias sobre os desaparecimentos, Arns recebeu uma carta de seu colega argentino (Raúl) Primatesta, demonstrando incômodo por essa atitude que ele considerava uma ingerência nos assuntos internos argentinos. Arns respondeu a essa carta vinda da Argentina dizendo que a dignidade não tem fronteiras e rechaçou a falácia de que teria invadido uma jurisdição alheia ao contar ao mundo o que o Episcopado da Argentina ocultava: a existência de milhares de desaparecidos.

“A Igreja argentina foi servil à vontade da ditadura e aos poderes estabelecidos, era o tipo de Igreja que o Vaticano considera mais apropriada a seus interesses”, disse à Carta Maior desde Roma o diplomata aposentado Enrico Calamai. Apontado como o “Schindler italiano”, por ter arriscado a vida ao colaborar na fuga de centenas de perseguidos políticos ítalo-argentinos, Calamai conheceu de perto a cumplicidade entre o Vaticano e o Episcopado argentino. “Era inútil pedir ajuda à igreja, sempre diziam não saber nada e pelo que foi se conhecendo com o tempo eles sabiam bastante”.

O contraponto entre as igrejas brasileira e argentina ganha atualidade quando começa a rodada de apostas sobre um futuro pontífice latino-americano e se discute a passagem do legado de Ratzinger, um Papa indiscutivelmente alemão, mas que bem poderia ter pertencido à Arquidiocese de Buenos Aires, por suas posições políticas e teológicas.
 
 O artigo é de Dario Pignotti

Tradução: Katarina Peixoto

sábado, 16 de fevereiro de 2013

O PAPA, A IGREJA E NÓS



 I A RENÚNCIA DO BENTO XVI

O Papa Bento XVI renunciou, dizendo: “Depois de ter examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idôneas para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia, no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado. Por isso, bem consciente da gravidade deste ato, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma, Sucessor de São Pedro.”
O historiador e diretor do jornal do Vaticano L’OSSERVATORE ROMANA, Giovanni Maria Van, afirmou: “Bento XVI não deixou o cargo porque perdeu a confiança na Igreja, mas porque conheceu o poder longamente e não tem mais condições de governar como quer a Igreja, o que exige força. É um gesto de confiança no homem e em Deus”. O jornal alemão DIE ZEIT escreveu: “Um papa aposentado? Ele renunciou, não por ter recebido alguma oferta bem atrativa de trabalho, mas porque sabe não estar mais em condições de continuar em razão da idade, fraqueza do corpo e cansaço, motivos que no mundo dos carreiristas não existem.”
“... cansaço, idade avançada, fraqueza de corpo, falta de vigor de espírito, incapacidade de administrar bem ...”.
Mas, falta a resposta à pergunta: Porque? Porque este cansaço, esta incapacidade de administrar bem, etc.? Quais razões levaram o Papa Bento XVI a renunciar? O que é que está pesando demais nos já frágeis ombros do Pontífice?

É “o mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância para a vida da fé?”
São as questões de ordem moral: camisinha, aborto, eutanásia, casamento entre pessoas do mesmo sexo ...?
São os escândalos, envolvendo os padres pedófilos?
São as práticas obscuras no IOR (Instituto para Obras Religiosas), mais conhecido como o Banco do Vaticano?
São as disputas internas no Vaticano, “as rivalidades”, algum poder paralelo no seio da direção e administração da Igreja?
É o carreirismo eclesiástico presente de forma tão escancarada, hoje em dia, no meio dos clérigos, ou “a cara da Igreja desfigurada em razão das divisões no corpo eclesiástico”?
É a “hipocrisia religiosa”, ou são “as atitudes que buscam aplausos”, presentes no mundo da fé, da religiosidade humana, da Igreja?

O Papa é um ser humano, portanto é normal estar cansado aos 85 anos de idade e, mais ainda, por exercer a sua função espinhosa. Mas a pergunta continua: porque ficou tão cansado, a ponto de sentir-se obrigado a renunciar?

II UM NOVO PAPA ... UMA NOVA IGREJA?

É impressionante como a mídia “se preocupa” com notícias, puramente especulativas, a respeito do conclave que há de acontecer no próximo mês de março. São apontados os favoritos ao anel do pescador ..., há casas onde são feitas apostas ..., cardeais dão entrevistas, ‘jurando de pés juntos’ que nem pensam em ser candidato ..., podemos assistir a simulações computadorizadas para ver como funciona um conclave ... . De fato, só falta termos acesso ao cardápio, quando os 117 cardeais eleitores, todos candidatos ao trono de Pedro, ficarão reclusos na belíssima Capela Sistina até que saia aquela fumacinha branca que anuncia: “habemus papam!” (que alívio, porque aí tudo estará resolvido!). Do ponto de vista midiático, dá para entender este interesse. Mas creio que seja preciso nos interessar por assuntos mais importantes que dizem respeito a outros aspectos da vida da Igreja.
Primeiramente gostaria de observar que não vai fazer aquela diferença toda quem vai ser o novo Papa, enquanto as pesadas estruturas hierárquicas na Igreja perpetuam. O problema não está tanto na pessoa do Papa. Ele até pode ter as melhores intenções. Mas, enquanto todo o aparato em torno dele continua do mesmo jeito como está, enquanto ele continua a ser “chefe de Estado”, cercado por “pompas e circunstâncias”, tratado com títulos honoríficos, etc. etc., a missão de ele ser o “primus inter pares”, quer dizer, o primeiro a servir, não terá a mínima chance, nada mudará e, consequentemente, a humildade evangélica passará longe da Praça de São Pedro, condição sine qua non para o Evangelho de Cristo tornar-se lei vigente.
Por isso, tomo a liberdade de colocar algumas perguntas.
Porque esta temporada da “sede vacante” não é aproveitada para refletir sobre a Igreja, com questionamentos como, por exemplo: “Da Igreja que temos para uma Igreja à luz do Espírito do Concílio Vaticano II na América Latina”; ou: “O que eu significo para a Igreja e o que ela significa para mim?”, ou ainda: “A Igreja é, de fato, sinal visível do Reino de Deus?”
Porque falta a coragem de se revestir do mesmo espírito do Papa João XXIII, que desejava ver uma igreja em contínuo “aggiornamento”, a fim de que ela não perdesse, constantemente, o bonde da história da humanidade? Porque não é retomado o espírito do Concílio Vaticano II, que propôs caminhos pavimentados pelo diálogo com as outras religiões, cristãs ou não, e procurou construir uma Igreja baseada, entre outros fatores, na colegialidade entre os bispos? De onde vem este medo de assumir aquele “ponto luminoso”, de “querer uma Igreja que se apresenta e quer realmente ser a Igreja de todos, em particular, a Igreja dos pobres”1, vontade
expressa pelo Papa João XXIII em sua mensagem de 11 de setembro de 1962, um mês antes da abertura do Concílio Vaticano II, aquela “igreja dos pobres”, confirmada pelo “Pacto das Catacumbas”, firmado entre 40 Padres Conciliares, poucos dias antes do término do Concílio, em 16 de novembro de 1965 nas catacumbas de Santa Domitila, em Roma?
Aonde encontrar as causas de não conseguir largar este modelo piramidal de Igreja, que está, por certo, em discordância com a comunidade sonhada por Jesus, quando Ele deu a dica de como deveriam ser as relações entre nós, a nossa convivência, dizendo que “entre vós não deverá ser assim. Ao contrário, aquele que quiser tornar-se grande entre vós seja aquele que serve, e o que quiser ser o primeiro dentre vós, seja o vosso servo.” (Mateus 20, 26.27), ou ainda, quando afirma diante de Pilatus que “meu reino não é deste mundo” (João 18, 36), indicando que o Reino de Jesus é o reino da verdade, o reino daqueles que estão do lado da verdade, verdade esta que nunca admite submissão ou obediência cega, mas sim que as pessoas sejam “bem conscientes” do que fazem e da fé que confessam. Falando sobre estes aspectos da vida da Igreja, Dom Aloísio Lorscheider dizia: “Pessoas livres, pessoas francas – isso deveria existir também na Igreja: no meio da comunidade eclesial deveria haver mais possibilidade de ser franco e de opinar, de não ter medo. As pessoas têm que saber assumir a sua história.”2
São estas apenas algumas questões que passam por minha cabeça nestes dias.

É muito importante que não se perca de vista o que a reflexão e algumas práticas da Igreja dos últimos cinqüenta anos deixaram como legado:
1. O ensinamento do Concílio Vaticano II a respeito da essência da Igreja que é “Povo de Deus”;
2. A dinâmica da Igreja enquanto Comunidade Eclesial de Base, “a única maneira da Igreja ser”, como dizia Dom Aloísio Lorscheider;
3. A redescoberta da Igreja na sua dimensão missionária (Aparecida);
4. O papel profético que a Igreja deve exercer no mundo, testemunhado por Dom Helder Camara, que dizia: “Não deixem cair a profecia!”
5. A Igreja pobre no meio dos pobres, como elemento e força de transformação (Medellín);
6. A Igreja “Comunhão e Participação” (Puebla);
7. A Igreja que não tem medo do testemunho em favor da vida, através do martírio (Dom Oscar Romero, entre tantos outros).
O Papa Bento XVI defende "uma renovação verdadeira" da Igreja (Vaticano, 14-02-2013). Com todo respeito, mas ele mesmo, enquanto estava com a mão na massa, poderia ter investido mais nesta renovação, cujos ingredientes, apresentados acima nos sete pontos, já foram experimentados pela própria Igreja! É só fazer?!
Fortaleza, 14-02-2013,
Geraldo Frencken

1 JUNIOR, Francisco de Aquino. IGREJA DOS POBRES. Do Vaticano II a Medellin e aos dias atuais. Fortaleza: Edições ADITAL, 2012, p. 5
 2 LORSCHEIDER, Dom Aloísio. “Mantenham as lâmpadas acesas. Revisitando o Caminho, Recriando a Caminhada. Um diálogo de Aloísio Cardeal Lorscheider com O GRUPO. Fortaleza, Editora da UFC, 2008. Org. Tursi, Carlo e Frencken, Geraldo, p. 135

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

DOM HELDER PESSOA CAMARA, SEMPRE

No dia 07 de fevereiro de 1909 nasceu, na cidade de Fortaleza, Dom Helder Pessoa Camara. Depois de uma vida na qual praticou a pobreza evangélica, se dedicou, permanentemente, aos pobres, defendeu, com firmeza, os Direitos Humanos, e deu um novo rosto à Igreja no Brasil, o “Profeta do Século XX”, abafado e perseguido pelos governos militares e não entendido pela hierarquia da própria Igreja, encontrou-se com seu Criador na noite do dia 27 de agosto de 1999.

Gostaria de contar alguns fatos pouco divulgados, porém verídicos, daqueles dias. Claudete e eu – morávamos naquele ano em Recife -  fomos participantes, portanto, testemunhos oculares, da cerimônia de despedida do Dom.

Na tarde-noite daquele sábado, dia 28 de agosto de 1999, uma grande multidão acompanhava o Dom, cujo corpo era coberto de flores de todas as cores e todos os perfumes. O caminho era longo, desde a Igreja das Fronteiras, morada do Dom, passando pelas avenidas do Recife, subindo os morros de Olinda, até chagar em frente à catedral, onde se concentrava, desde cedo, grande multidão que rezava sua fé, chorava sua dor, mas cantava também sua esperança, divina força dos pobres. Havia sido preparada uma área reservada e cercada na qual, ao redor do corpo do Dom, encontravam-se bispos, padres e alguns convidados. O povo ao redor, sem poder ver o rosto descansado do seu pastor, participava intensamente daquela celebração da vida e ressurreição. Em dado momento, um jovem, Jaime Amorim, coordenador do M.S.T.,  se soltou no meio do povo, desenrolou e mostrou a todos a bandeira do Movimento dos Sem Terra, e colocou-a sobre o caixão do Dom. Enquanto uns ficavam sem saber como reagir diante de tal atitude inusitada, outros, isto é, quase todos, aprovavam este gesto, que expressava uma simbologia que, embora não fizesse parte do rito litúrgico romano,  proporcionava profundo sentido àquela celebração. 

Quase treze anos depois, em 17 de agosto de 2012, na Sé de Olinda, por motivos diversos, foi realizada a exumação dos restos mortais de Dom Helder. Ouçam o que aconteceu naquela manhã fria e chuvosa de agosto. Assuero Gomes, médico pediatra e escritor, amigo e fiel seguidor do Dom, nos apresentou o seguinte relato, acompanhado de bela reflexão: 

“Depois de praticamente treze anos sepultado no chão dessa igreja, seus restos mortais repousarão ao lado dos de D. Lamartine, bispo irmão que o auxiliou no pastoreio da Arquidiocese de Olinda e Recife e dos de Padre Henrique, mártir da ditadura que se instalou no nosso país a partir de 1964.
Envolta em seu caixão ainda restava a bandeira do Movimento dos Sem Terra, intacta, na época, um símbolo da luta de camponeses em busca de um pedaço de terra para plantar e sobreviver com suas famílias. Lembro-me do dia do enterro. 

Confesso que nutria em meu íntimo a esperança de que o corpo dele estivesse intacto também, tal qual a bandeira, pois no meu pensamento isso seria um sinal poderoso para a Igreja, de que o Dom é um santo e como tal, tudo que ele lutara e escrevera e sinalizara teria que ser aceito oficialmente. Ledo engano. Mais uma vez o profeta surpreende! Mais uma vez ele nos mostra que os pobres é que são os profetas de Deus.

Lentamente ele nos vai ensinando sua última lição, ou seria a primeira na vida plena? Não importa, é uma lição importante, um ensinamento para nós e para nossa Igreja: tudo passa, prestígio, glória, cargos, poder. Tudo é pó e ao pó tudo retorna.
 Outro ensinamento: os pobres são os destinatários primeiros da boa nova do Ressuscitado, pois só Ele é quem saiu do túmulo com vida, e vida plena.

Pouco a pouco a morte vai mostrando aos olhos humanos o estrago que causa, mesmo nas pessoas mais especiais e queridas. O som lúgubre, oco, de saudade, destampa as lajes do chão da Sé. Outra surpresa, o Dom foi sepultado como os leigos o são, com a cabeça voltada para a porta, e não ao contrário, como os clérigos.
 O que o desgaste da morte não mostra é o que os olhos da fé iluminam, como uma luz vinda do alto a nos perguntar: por que procuram o vivo dentre os mortos?

A resposta veio-me algumas horas após. Saindo dali, deu-se à luz uma criança, nos meus braços, saudável, chorando forte a plenos pulmões, inspirando e expirando o sopro da vida, o pneuma que a tudo anima.

Certamente mais um sinal do Dom, ensinando que a vida é eterna.”

Estatua do Dom em frente à Igreja das Fronteiras – Recife

Que o espírito de Dom Helder possa sobreviver na prática da vida de cada um(a) de nós.
Fortaleza, 06-02-2013,
Geraldo Frencken