Desde o dia 10 de fevereiro, quando sua renúncia caiu como um raio sobre a aristocracia vaticana, o Papa Bento XVI confirmou ser um político imprevisível e intrinsecamente alemão. Este homem nascido na Baviera há 85 anos, fisicamente debilitado e intelectualmente lúcido, deixará quinta-feira (28) a chefia da Igreja de uma forma sem precedentes na história moderna, o que não chegou a surpreender alguns vaticanólogos (uma especialidade muito cultivada na imprensa da Itália) que acompanham há muitas décadas seu método de trabalho e as premissas geopolíticas sobre as quais guiou seu trabalho como cardeal e papa, em particular na relação com a América Latina. Em várias análises dos citados “vaticanólogos” pode-se ler que o chefe de Estado demissionário é um homem de poder, agarrado a um projeto que espera poder perpetuar para além de sua saída e esta é a razão última de seu afastamento antecipado: permanecer como o grande eleitor de seu sucessor.
Joseph Ratzinger pode ser considerado como o arquiteto de uma revisão doutrinária extremista no Vaticano, iniciada muito antes de sua consagração como Papa em abril de 2005, mas sim a partir de sua indicação como prefeito da Sagrada Congregação da Doutrina da Fé, em 1981. A partir daí, com racionalidade germânica, Ratzinger foi desmontando peça por peça o que havia sido construído durante quase duas décadas na igreja latino-americana desde o Concílio Vaticano II, por meio das Conferências Episcopais de Medellin, em 1968, e de Puebla, em 1979, à luz do trabalho de um bispado cada vez mais sensível frente a exclusão de centenas de milhões de católicos do continente. O cardeal bávaro caracterizou esse essa corrente católica de crescente penetração popular como a transposição automática à prática evangélica das teses da Teologia da Libertação, concebidas pelo bispo peruano Gustavo Gutiérrez e enriquecidas por um de seus teóricos posteriores, o ex-frei franciscano Leonardo Boff, doutorado na Alemanha.
Devido à sua erudição eurocentrista, o ex-arcebispo de Munique Ratzinger não foi capaz de distinguir entre a Teologia da Libertação, certamente acolhida por uma parte dos clérigos mas sem chegar a ser uma maioria, e o conjunto dessa igreja latino-americana popular é pós-concílio, onde não existe uma homogeneidade ideológica férrea, ainda que houvesse sim uma disseminada opção preferencial pelos pobres. É errado sustentar que eram teólogos marxistas dois mártires como foram o arcebispo de El Salvador Amulfo Romero, assassinado por paramilitares enquanto celebrava uma missa em março de 1980, ou o arcebispo argentino Angelelli, vítima de um atentado durante a ditadura militar, em agosto de 1976. Dois assassinatos, não os únicos, que a Cúria Romana ignorou.
A indiferença do Vaticano ante esses crimes desnuda sua cumplicidade por omissão e sua percepção atrofiada da religiosidade popular na América Latina, assimilando de maneira simplista o trabalho missionário com o proselitismo político. Esta atrofia ideológica, arrastada desde a Guerra Fria, impregnou igualmente os papados do polonês João Paulo II e do alemão Bento XVI, este último guiado por um fundamentalismo opressor das individualidades das igrejas nativas.
Nos anos 90, a fúria vaticana, como Ratzinger como o homem forte da Cúria, recaiu sobre Dom Samuel Ruiz Garcia, bispo de San Cristóbal de las Casas, Chiapas, por seu compromisso com as demandas indígenas e o sincretismo entre catolicismo e cultos dos povos originários. Após algumas sanções canônicas, Dom Samuel teve que deixar o cargo exatamente ao cumprir 75 anos, nem um dia a mais, em outro sinal de desgosto com o qual o Vaticano recebeu seu apoio à rebelião do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Para medir o desatino sociológico e antropológico dessa perspectiva míope que marcou estes anos de poder alemão na Santa Sé pode-se citar a deserção de dezenas de milhões de católicos brasileiros, argentinos, peruanos e centroamericanos que foram engrossar o rebanho pentecostal. Um fenômeno menos pronunciado no caso do México, onde o fervor católico parece resistir até às forças destrutivas do Vaticano.
Neste afã de expurgar aos que considerou como impuros por questionar o celibato, a proibição dos preservativos e defender maior peso das igrejas locais na nomeação dos bispos, Ratzinger escolheu como uma de suas metas cruciais a desconstrução e “reorientação” da Conferência Nacional de Bispos do Brasil. Um trabalho iniciado em 1984, por meio da perseguição, apresentada como questionamento canônico, de Leonardo Boff, com o que materializava uma advertência à CNBB e à arquidiocese de São Paulo, cujo titular, Dom Paulo Evaristo Arns, tinha então o freio como conselheiro teológico.
Dom Paulo era o cardeal sulamericano que encarnava ao mesmo tempo a luta contra o regime militar brasileiro e havia convertido sua arquidiocese, a maior do subcontinente, em refúgio dos militantes perseguidos pelas ditaduras argentina, chilena e uruguaia. “O arcebispo Arns foi extraordinário conosco, uma pessoa na qual os perseguidos políticos podiam encontrar a solidariedade que nos foi negada pela hierarquia católica argentina”, disse a Carta Maior, desde Buenos Aires, Dora Salas, uma militante que fugiu de seu país nos anos 70, logo depois da desaparição de seu marido.
Em 2006, ao se cumprirem 30 anos do golpe que instalou o general Jorge Videla na Casa Rosada, o governo do então presidente Néstor Kirchner lamentou não poder reivindicar a memória de nenhum dos cardeais de seu país durante os anos de chumbo e, em troca, prestou homenagem ao arcebispo emérito Arns.
Há sete anos, na véspera do 24 de março, data da sublevação golpista, o embaixador argentino Juan Pablo Lohlé viajou até São Paulo para condecorar o arcebispo emérito com a Ordem do Libertador José de San Martín, em uma cerimônia onde velhos militantes e antigos membros da organização humanitária Clamor (que trabalhou lado a lado com a Arquidiocese de São Paulo), me contaram seus enfrentamentos com a cúria argentina, sempre muito obsequiosa frente os generais e desinteressada em matéria de Direitos Humanos.
Em razão de sua solidariedade com os exilados argentinos e as denúncias sobre os desaparecimentos, Arns recebeu uma carta de seu colega argentino (Raúl) Primatesta, demonstrando incômodo por essa atitude que ele considerava uma ingerência nos assuntos internos argentinos. Arns respondeu a essa carta vinda da Argentina dizendo que a dignidade não tem fronteiras e rechaçou a falácia de que teria invadido uma jurisdição alheia ao contar ao mundo o que o Episcopado da Argentina ocultava: a existência de milhares de desaparecidos.
“A Igreja argentina foi servil à vontade da ditadura e aos poderes estabelecidos, era o tipo de Igreja que o Vaticano considera mais apropriada a seus interesses”, disse à Carta Maior desde Roma o diplomata aposentado Enrico Calamai. Apontado como o “Schindler italiano”, por ter arriscado a vida ao colaborar na fuga de centenas de perseguidos políticos ítalo-argentinos, Calamai conheceu de perto a cumplicidade entre o Vaticano e o Episcopado argentino. “Era inútil pedir ajuda à igreja, sempre diziam não saber nada e pelo que foi se conhecendo com o tempo eles sabiam bastante”.
O contraponto entre as igrejas brasileira e argentina ganha atualidade quando começa a rodada de apostas sobre um futuro pontífice latino-americano e se discute a passagem do legado de Ratzinger, um Papa indiscutivelmente alemão, mas que bem poderia ter pertencido à Arquidiocese de Buenos Aires, por suas posições políticas e teológicas.
Joseph Ratzinger pode ser considerado como o arquiteto de uma revisão doutrinária extremista no Vaticano, iniciada muito antes de sua consagração como Papa em abril de 2005, mas sim a partir de sua indicação como prefeito da Sagrada Congregação da Doutrina da Fé, em 1981. A partir daí, com racionalidade germânica, Ratzinger foi desmontando peça por peça o que havia sido construído durante quase duas décadas na igreja latino-americana desde o Concílio Vaticano II, por meio das Conferências Episcopais de Medellin, em 1968, e de Puebla, em 1979, à luz do trabalho de um bispado cada vez mais sensível frente a exclusão de centenas de milhões de católicos do continente. O cardeal bávaro caracterizou esse essa corrente católica de crescente penetração popular como a transposição automática à prática evangélica das teses da Teologia da Libertação, concebidas pelo bispo peruano Gustavo Gutiérrez e enriquecidas por um de seus teóricos posteriores, o ex-frei franciscano Leonardo Boff, doutorado na Alemanha.
Devido à sua erudição eurocentrista, o ex-arcebispo de Munique Ratzinger não foi capaz de distinguir entre a Teologia da Libertação, certamente acolhida por uma parte dos clérigos mas sem chegar a ser uma maioria, e o conjunto dessa igreja latino-americana popular é pós-concílio, onde não existe uma homogeneidade ideológica férrea, ainda que houvesse sim uma disseminada opção preferencial pelos pobres. É errado sustentar que eram teólogos marxistas dois mártires como foram o arcebispo de El Salvador Amulfo Romero, assassinado por paramilitares enquanto celebrava uma missa em março de 1980, ou o arcebispo argentino Angelelli, vítima de um atentado durante a ditadura militar, em agosto de 1976. Dois assassinatos, não os únicos, que a Cúria Romana ignorou.
A indiferença do Vaticano ante esses crimes desnuda sua cumplicidade por omissão e sua percepção atrofiada da religiosidade popular na América Latina, assimilando de maneira simplista o trabalho missionário com o proselitismo político. Esta atrofia ideológica, arrastada desde a Guerra Fria, impregnou igualmente os papados do polonês João Paulo II e do alemão Bento XVI, este último guiado por um fundamentalismo opressor das individualidades das igrejas nativas.
Nos anos 90, a fúria vaticana, como Ratzinger como o homem forte da Cúria, recaiu sobre Dom Samuel Ruiz Garcia, bispo de San Cristóbal de las Casas, Chiapas, por seu compromisso com as demandas indígenas e o sincretismo entre catolicismo e cultos dos povos originários. Após algumas sanções canônicas, Dom Samuel teve que deixar o cargo exatamente ao cumprir 75 anos, nem um dia a mais, em outro sinal de desgosto com o qual o Vaticano recebeu seu apoio à rebelião do Exército Zapatista de Libertação Nacional.
Para medir o desatino sociológico e antropológico dessa perspectiva míope que marcou estes anos de poder alemão na Santa Sé pode-se citar a deserção de dezenas de milhões de católicos brasileiros, argentinos, peruanos e centroamericanos que foram engrossar o rebanho pentecostal. Um fenômeno menos pronunciado no caso do México, onde o fervor católico parece resistir até às forças destrutivas do Vaticano.
Neste afã de expurgar aos que considerou como impuros por questionar o celibato, a proibição dos preservativos e defender maior peso das igrejas locais na nomeação dos bispos, Ratzinger escolheu como uma de suas metas cruciais a desconstrução e “reorientação” da Conferência Nacional de Bispos do Brasil. Um trabalho iniciado em 1984, por meio da perseguição, apresentada como questionamento canônico, de Leonardo Boff, com o que materializava uma advertência à CNBB e à arquidiocese de São Paulo, cujo titular, Dom Paulo Evaristo Arns, tinha então o freio como conselheiro teológico.
Dom Paulo era o cardeal sulamericano que encarnava ao mesmo tempo a luta contra o regime militar brasileiro e havia convertido sua arquidiocese, a maior do subcontinente, em refúgio dos militantes perseguidos pelas ditaduras argentina, chilena e uruguaia. “O arcebispo Arns foi extraordinário conosco, uma pessoa na qual os perseguidos políticos podiam encontrar a solidariedade que nos foi negada pela hierarquia católica argentina”, disse a Carta Maior, desde Buenos Aires, Dora Salas, uma militante que fugiu de seu país nos anos 70, logo depois da desaparição de seu marido.
Em 2006, ao se cumprirem 30 anos do golpe que instalou o general Jorge Videla na Casa Rosada, o governo do então presidente Néstor Kirchner lamentou não poder reivindicar a memória de nenhum dos cardeais de seu país durante os anos de chumbo e, em troca, prestou homenagem ao arcebispo emérito Arns.
Há sete anos, na véspera do 24 de março, data da sublevação golpista, o embaixador argentino Juan Pablo Lohlé viajou até São Paulo para condecorar o arcebispo emérito com a Ordem do Libertador José de San Martín, em uma cerimônia onde velhos militantes e antigos membros da organização humanitária Clamor (que trabalhou lado a lado com a Arquidiocese de São Paulo), me contaram seus enfrentamentos com a cúria argentina, sempre muito obsequiosa frente os generais e desinteressada em matéria de Direitos Humanos.
Em razão de sua solidariedade com os exilados argentinos e as denúncias sobre os desaparecimentos, Arns recebeu uma carta de seu colega argentino (Raúl) Primatesta, demonstrando incômodo por essa atitude que ele considerava uma ingerência nos assuntos internos argentinos. Arns respondeu a essa carta vinda da Argentina dizendo que a dignidade não tem fronteiras e rechaçou a falácia de que teria invadido uma jurisdição alheia ao contar ao mundo o que o Episcopado da Argentina ocultava: a existência de milhares de desaparecidos.
“A Igreja argentina foi servil à vontade da ditadura e aos poderes estabelecidos, era o tipo de Igreja que o Vaticano considera mais apropriada a seus interesses”, disse à Carta Maior desde Roma o diplomata aposentado Enrico Calamai. Apontado como o “Schindler italiano”, por ter arriscado a vida ao colaborar na fuga de centenas de perseguidos políticos ítalo-argentinos, Calamai conheceu de perto a cumplicidade entre o Vaticano e o Episcopado argentino. “Era inútil pedir ajuda à igreja, sempre diziam não saber nada e pelo que foi se conhecendo com o tempo eles sabiam bastante”.
O contraponto entre as igrejas brasileira e argentina ganha atualidade quando começa a rodada de apostas sobre um futuro pontífice latino-americano e se discute a passagem do legado de Ratzinger, um Papa indiscutivelmente alemão, mas que bem poderia ter pertencido à Arquidiocese de Buenos Aires, por suas posições políticas e teológicas.
O artigo é de Dario Pignotti
Tradução: Katarina Peixoto
Tradução: Katarina Peixoto