Carlo Tursi, - teólogo
Em nome da
verdade e do bom senso, é preciso admiti-lo: Clérigos e leigos católicos estão
indo longe demais em sua ânsia – a princípio, justificada – de revalorizar a
comunhão eucarística. Pior: Estão errando o alvo! A forma se sobrepõe ao
conteúdo, o secundário assume o lugar do primordial, a obsessão substitui a
serenidade. Senão, vejamos:
Testemunhei,
durante missa em conhecida paróquia da capital cearense, um sacerdote jovem
(sic!) instar os fiéis que (ainda) recebem a hóstia consagrada com a mão para
verificarem se, após o consumo da partícula, eventuais migalhas da mesma não
permaneciam grudadas na palma da sua mão: Seria preciso – assim o prelado –
consumi-las uma por uma, já que até o menor farelo branco conteria o Cristo
Eucarístico por inteiro! Fiquei estarrecido. Pensei: Onde foi que esse padre estudou Teologia? Quem teria ensinado a ele
tamanho disparate? Mas o meu queixo caiu mesmo na hora em que uma moça
passou por mim na fila da comunhão “catando” literalmente invisíveis restos
eucarísticos da palma da mão dela, colocando-os na sua boca! Meu filho de 18
anos, também assistindo à cena, cochichou para mim: “Isso aí é neura, viu!”
No que pese a
irreverência da expressão, tive que concordar com ele. Para começar: Se em cada
migalha da hóstia (pozinho de farinha? molécula?) está contido o Cristo
inteiro, quantos “Cristos inteiros” terá consumido a pessoa que comeu toda a partícula? Mais: Se Cristo não é
parcelado, como “Ele” poderia “sobrar” após ter sido consumido? Na verdade,
estes raciocínios – se é que raciocinar ainda possa ser considerado lícito para
um católico... – só pretendem mostrar a que contradições absurdas conduz uma
compreensão material, isto é, substancialista da presença real de
Jesus no símbolo eucarístico. Por presumirem que a consagração das espécies
sobre o altar possa produzir – como se fórmula mágica fosse – a sua transformação
substancial, fazendo aparecer – no lugar
do pão e do vinho – o corpo e o sangue de Jesus é que muitos fiéis
desenvolveram, sob a orientação de clérigos ainda reféns da Contrarreforma,
hábitos reverenciais obsessivos: não
mastigar a hóstia na boca (será que o “corpo de Cristo” pode sentir dor?!),
não comer nada em casa antes da missa
(enquanto o apóstolo Paulo se sentiu à vontade para sugerir aos coríntios que
comessem em casa antes de participar da ceia comunitária!), receber a hóstia em posição genuflexa e sobre a língua (ao
contrário do que fez Jesus com os seus discípulos na Última Ceia!), guardar a partícula consagrada após o culto
em receptáculos de ouro, adorando-a por horas seguidas (como se Jesus
quisesse ser adorado como um objeto numinoso...). Foi o caráter compulsivo destas formas devocionais
católicas e o agudo sentimento de culpa
do devoto em caso de sua omissão que já levaram Sigmund Freud a compara-las às neuroses obsessivas...
É forçoso
admiti-lo: Os defensores do dogma da transubstanciação
alimentam nos fiéis uma consciência mágica própria da fase infantil, permitindo
uma materialização grotesca, no imaginário católico popular, do mistério da fé.
Em que consiste, no entanto, a experiência essencial desse mistério? Ora,
conforme palavras do próprio Mestre trata-se de fazer isso “em memória” d’Ele,
ou seja, comer o pão (de verdade!) e beber o vinho (de verdade!) para assim
trazer presente, em meio à assembleia
dos discípulos, o Seu espírito, a
essência de Sua vida e mensagem que foi a autodoação,
a auto-entrega, o compartilhar-se com os outros, o ser para os outros. É esta
a verdadeira presença real – e onde este
espírito não se fizer presente na
mente dos fiéis, ali inexistem eucaristia, sacramento e comunhão com Jesus, por
mais que alguém se arraste de joelhos pelo chão da igreja... Não são as formas
reverenciais e a quantidade de incenso que revelam o sagrado! Não somos
fetichistas que gozam só ao olhar o objeto de sua devoção! Não tem comunhão com
Cristo quem não comunga com seu espírito, sua essência expressa no gesto do Lava-pés: Ao recebermos o símbolo
eucarístico do corpo e do sangue de Jesus, estamos alimentando espiritualmente a nossa (sempre fraca)
disposição para servir ao próximo, partilhar com os outros o que temos e nos
comprometer com o melhoramento de uma sociedade tão desigual como é a nossa.
Este é o autêntico mistério da fé: que o Cristo Espiritual que se oferece a nós
em forma de alimento seja capaz de – ainda hoje – mover os nossos corações a se
abrirem para os grandes desafios do nosso momento histórico, enchendo-nos de
fé, esperança e amor para dar (e não para
vender). Uma compreensão falsa da
presença real, ao contrário, vê o Cristo materializado
na substância da partícula, fala inapropriadamente em “milagre eucarístico” e
espera da ingestão de Jesus, em primeiro lugar, benefícios para si próprio, sejam
eles psicológicos (paz de espírito,
ausência de conflito, esquecimento dos problemas reais) ou físicos (saúde, proteção contra a violência,
prosperidade). O caráter ilusório, quase delirante dessas noções precisa ser trazido à luz – “para o nosso bem e de toda a Santa Igreja”.
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