terça-feira, 20 de agosto de 2013

“ N e u r a s e u c a r í s t i c a s ”

      Carlo Tursi, - teólogo
                          
Em nome da verdade e do bom senso, é preciso admiti-lo: Clérigos e leigos católicos estão indo longe demais em sua ânsia – a princípio, justificada – de revalorizar a comunhão eucarística. Pior: Estão errando o alvo! A forma se sobrepõe ao conteúdo, o secundário assume o lugar do primordial, a obsessão substitui a serenidade. Senão, vejamos:
Testemunhei, durante missa em conhecida paróquia da capital cearense, um sacerdote jovem (sic!) instar os fiéis que (ainda) recebem a hóstia consagrada com a mão para verificarem se, após o consumo da partícula, eventuais migalhas da mesma não permaneciam grudadas na palma da sua mão: Seria preciso – assim o prelado – consumi-las uma por uma, já que até o menor farelo branco conteria o Cristo Eucarístico por inteiro! Fiquei estarrecido. Pensei: Onde foi que esse padre estudou Teologia? Quem teria ensinado a ele tamanho disparate? Mas o meu queixo caiu mesmo na hora em que uma moça passou por mim na fila da comunhão “catando” literalmente invisíveis restos eucarísticos da palma da mão dela, colocando-os na sua boca! Meu filho de 18 anos, também assistindo à cena, cochichou para mim: “Isso aí é neura, viu!”
No que pese a irreverência da expressão, tive que concordar com ele. Para começar: Se em cada migalha da hóstia (pozinho de farinha? molécula?) está contido o Cristo inteiro, quantos “Cristos inteiros” terá consumido a pessoa que comeu toda a partícula? Mais: Se Cristo não é parcelado, como “Ele” poderia “sobrar” após ter sido consumido? Na verdade, estes raciocínios – se é que raciocinar ainda possa ser considerado lícito para um católico... – só pretendem mostrar a que contradições absurdas conduz uma compreensão material, isto é, substancialista da presença real de Jesus no símbolo eucarístico. Por presumirem que a consagração das espécies sobre o altar possa produzir – como se fórmula mágica fosse – a sua transformação substancial, fazendo aparecer – no lugar do pão e do vinho – o corpo e o sangue de Jesus é que muitos fiéis desenvolveram, sob a orientação de clérigos ainda reféns da Contrarreforma, hábitos reverenciais obsessivos: não mastigar a hóstia na boca (será que o “corpo de Cristo” pode sentir dor?!), não comer nada em casa antes da missa (enquanto o apóstolo Paulo se sentiu à vontade para sugerir aos coríntios que comessem em casa antes de participar da ceia comunitária!), receber a hóstia em posição genuflexa e sobre a língua (ao contrário do que fez Jesus com os seus discípulos na Última Ceia!), guardar a partícula consagrada após o culto em receptáculos de ouro, adorando-a por horas seguidas (como se Jesus quisesse ser adorado como um objeto numinoso...). Foi o caráter compulsivo destas formas devocionais católicas e o agudo sentimento de culpa do devoto em caso de sua omissão que já levaram Sigmund Freud a compara-las às neuroses obsessivas...

É forçoso admiti-lo: Os defensores do dogma da transubstanciação alimentam nos fiéis uma consciência mágica própria da fase infantil, permitindo uma materialização grotesca, no imaginário católico popular, do mistério da fé. Em que consiste, no entanto, a experiência essencial desse mistério? Ora, conforme palavras do próprio Mestre trata-se de fazer isso “em memória” d’Ele, ou seja, comer o pão (de verdade!) e beber o vinho (de verdade!) para assim trazer presente, em meio à assembleia dos discípulos, o Seu espírito, a essência de Sua vida e mensagem que foi a autodoação, a auto-entrega, o compartilhar-se com os outros, o ser para os outros. É esta a verdadeira presença real – e onde este espírito não se fizer presente na mente dos fiéis, ali inexistem eucaristia, sacramento e comunhão com Jesus, por mais que alguém se arraste de joelhos pelo chão da igreja... Não são as formas reverenciais e a quantidade de incenso que revelam o sagrado! Não somos fetichistas que gozam só ao olhar o objeto de sua devoção! Não tem comunhão com Cristo quem não comunga com seu espírito, sua essência expressa no gesto do Lava-pés: Ao recebermos o símbolo eucarístico do corpo e do sangue de Jesus, estamos alimentando espiritualmente a nossa (sempre fraca) disposição para servir ao próximo, partilhar com os outros o que temos e nos comprometer com o melhoramento de uma sociedade tão desigual como é a nossa. Este é o autêntico mistério da fé: que o Cristo Espiritual que se oferece a nós em forma de alimento seja capaz de – ainda hoje – mover os nossos corações a se abrirem para os grandes desafios do nosso momento histórico, enchendo-nos de fé, esperança e amor para dar (e não para vender). Uma compreensão falsa da presença real, ao contrário, vê o Cristo materializado na substância da partícula, fala inapropriadamente em “milagre eucarístico” e espera da ingestão de Jesus, em primeiro lugar, benefícios para si próprio, sejam eles psicológicos (paz de espírito, ausência de conflito, esquecimento dos problemas reais) ou físicos (saúde, proteção contra a violência, prosperidade). O caráter ilusório, quase delirante dessas noções precisa ser trazido à luz – “para o nosso bem e de toda a Santa Igreja”.                                                          

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