quarta-feira, 16 de abril de 2014

Sagrada misantropia, ou a Religião pós-moderna: a via crucis do sacro



A Pós-modernidade, em princípio, seria constituída pelos seguintes elementos: crise das “grandes narrativas”, dissolução dos tradicionais liames de orientação da Cultura, enfraquecimento dos discursos universalistas, valorização do particular e da diferença, avanço da secularização, e por fim a negação de um fundamento absoluto que estabeleça critério de Verdade. Este último aspecto impulsiona as atuais éticas niilistas, promovendo uma forte contraposição aos valores dogmáticos: identificados no discurso religioso, em particular, no discurso religioso cristão ocidental. Desse modo, parte dos pensadores niilistas pós-modernos defendem uma recusa dos discursos dogmáticos das religiões, porém em seu aspecto institucional. Dessa forma, tenta-se resguardar uma estreita e pequena via, na qual o sagrado e o discurso religioso possam ser pensados fora das amarras do dogmatismo, no limite se moldando quase que uma Religião niilista. Contudo, fora de tal via, a Religião é considerada como espaço no qual se gesta um discurso violento, pois com usurpação não reconhece as minorias nem a positividade das diferenças. Estabelecendo-se como portadora de uma verdade única absoluta, incapaz do diálogo com o diverso. Limitada por uma incomunicabilidade, típica daqueles que ouvem apenas a própria voz, a Religião se comportaria como lugar onde muito se fala, mas pouco se escuta: o santo sepulcro do diálogo. Contudo, o modo pós-moderno da experiência do sagrado não opera nesse registro, visto que não se apresenta como anúncio universal, mas como escuta individual: chamado divino e direto ao homem que não necessita de mediações institucionais. Assim, tratar-se-ia de uma forma de religiosidade que tenta não proceder pela observância de práticas externas, ou seja, apartada de todo aspecto ritualístico, não requerendo nem mesmo uma liturgia mínima ou uma religião do rito mínimo. Assim, seria possível se alçar para além do rito sem mito contemporâneo que se alimenta da indistinção atual entre sagrado e profano. Essa indistinção, típica do capitalismo avançado e consumista, desrealiza o sagrado para sacralizar o profano. Porém, este profano sacralizado não demanda qualquer esperança de vida futura, qualquer princípio de utopia, qualquer crítica ao presente, qualquer mensagem sobre o reino prometido. Pelo contrário, o profano tornado sacro não promete nada, pois tudo se realiza no consumo do presente. Ademais, toda utopia e princípio de esperança são empecilhos ao apelo consumista. Nada vai se realizar mais adiante, posto que tudo já é dado hoje, no instante mesmo em que se deseja, para ser consumido no aqui e no agora. O kairós é sempre hoje, momento oportuno para se
cosumir com prazer. Tal prazer está para além de qualquer curva orgástica, não tem princípio, nem ápice, nem fim. Gozo infindável, sentido como um todo continuo, logo ignora qualquer sequência temporal que se organize no eixo: passado, presente, futuro. Por conseguinte, se nada é esperado e tudo se oferece hoje, o estatuto do sacro é o mesmo do profano, não há mais aquém ou além, tudo se nivela no ponto mais baixo: aquele em que tudo se reduz ao cosumo. Posta na prateleira do consumo, a Religião, se quiser atrair como qualquer outro objeto de consumo deve abandonar tudo aquilo que é considerado ultrapassado. Ora, sendo a própria Religião considerada ultrapassada, ela para se integrar na homologação cultural de hoje deve deixar de ser ela mesma, se quiser sobreviver. Daí, a Religião se encontrar ante um paradoxo: para continuar existindo como religião deva deixar de ser religião. Mas, como isso poderia se realizar? Simplesmente deve deixar de se apresentar com áurea de sacralidade, se realiza então como Religião sem sacro. Estando nem acima, nem abaixo, mas reduzida à horizontalidade hodierna, nada mais aponta para o alto, nem há mais seta que indique uma via certa a ser seguida rumo ao futuro. Rebaixando-se ao nível do meramente ordinário, atualmente com base no sacro torna-se impossível formular uma crítica do presente. Pelo contrário, a Religião se submete à penúria insólita de um mundo cinicamente desrealizado. Mundo que enxerga como única fuga, para não encarar frontalmente o miserável caos que se estabelece, comemorar festivamente, celebrando a própria derrota como se uma vitória fosse. Como a tripulação de um naufrágio certo, prefere cantar enquanto se afoga, ao invés de procurar uma tábua de salvação. Ao se tornar sacro, o profano anula qualquer diferença entre os dois âmbitos, o sacro desrealizado não é apenas o profano sacralizando, mas também o sacro profanado. Não há nada mais profano, pois tudo é sagrado; não há nada mais sagrado, pois tudo é profano: perversa indistinção. Não apenas neste registro opera a religiosidade pós-moderna. Uma vez que o apelo e a vivência do sacro não passam mais pelo crivo de nenhum tipo de mediação, a religião perde seu caráter e dimensão comunitária. Ora, mas como poderia ser diferente, éticas niilistas não são feitas para sujeitos isolados? Opondo-se a qualquer apriorismo, neste horizonte ético, estabelecido na beira de um abismo, nem mesmo a existência do outro deve ser considerada, pois o outro pode tornar-se absoluto, logo pode desfazer o aspecto niilista da ação. Desse modo, na forma religiosa niilista pós-moderna não se apela à vida em comunidade. Portanto, se afasta de certo caráter de identidade comum, criador de liames de pertença e reciprocidade ao unir indivíduos na prática de um rito religioso comum. Tal recusa, da dimensão
comunitária das religiões, isto é, do elemento de civilidade e coletividade instaurado pelo reconhecimento de um sagrado comum, na concepção pós-moderna vincula-se à negação do caráter institucional da Religião. Na crítica pós-moderna, o religioso ao se institucionalizar possibilita a união entre violência e sagrado. Daí, a apologia de uma religião intimista, sustentada na reclusão solitária de indivíduos que não compartilham de um senso sagrado comum, pois, no registro pós-moderno, a experiência do sagrado é vivência particular incomunicável, algo absolutamente singular. Os indivíduos neste tipo degenerado de sacralidade são como misantropos divinos, posto que circunscrevem sua fé somente ao domínio privado. Busca-se evitar, assim, com a incomunicabilidade de uma fé privada e intimista, as motivações para guerras religiosas, e fanatismos sagrados, bem como a interferência de lideranças religiosas nos Estados laicos. Nova profissão de fé opositora de qualquer forma religiosa que desemboca em atuação pública, ou em prática de orientação da vida comum fundamentada em valores considerados divinos. Essa negativa do caráter comunitário das Religiões, se, em princípio, garante uma maior liberdade para a vivência da fé ao não limitar o sagrado em um rito pré-estabelecido e meramente institucional, pode, no entanto, criar idiossincrasia. Isto é, uma muda, limitada e solitária experiência do sagrado, que não se expressa além dos muros de uma singularidade intimista e rasa. Apresentando-se, pois, em oposição ao testemunho loquaz da dimensão social-afetiva encontrada, outrora, no mais elementar domínio do sentir religioso. Todavia, não se pode confundir tal caráter social-afetivo com um agregado de indivíduos que estão juntos apenas espacialmente. O avanço das novas formas de religiosidade, como por exemplo, o “engajado” protestantismo fundamentalista da atualidade e a renovação carismática, certificam o caráter meramente agregador da religiosidade que se apresentando como dotada de sacralidade age como se sacro nenhum houvesse. Por isso, cabe repetir: agregação e criação de liames afetivos são coisas distintas. Assim, repentinamente o frágil vínculo meramente agregador se dissolve na atomização de um sentir religioso acolhido nas profundezas de indivíduos que estão ladeados, porém não compartilham da criação de liames comuns. Criam-se, assim, fiéis perdidos nos labirintos de uma fé robusta na intimidade, porém frágil no caráter afetivo e social. Ora, são indivíduos gestados neste tipo de fé e vivência do sagrado (se é que ainda podemos ainda chamar de fé, algo que em sua ação impossibilita qualquer sacro) que se orgulham de seu credo, e ao mesmo tempo são capazes de defender um sistema de morte, adaptando-se cinicamente ao atual estado de penúria: existencial e coletiva. Fé incapaz de escapar das amarras de uma
apologia da vida privada, típica dos nossos tempos, desprezando, assim, uma sociabilidade que também pode ser gestada no âmbito religioso. Não uma sociabilidade imposta pela participação em repetidos ritos, porém criação de vínculos comuns que estão além da prática litúrgica ordinária. Nesse sentido, pode-se afirmar, não sem espanto, que o modo como os pós-modernos falam da experiência religiosa e a forma comportamental das novas religiosidades são próximos, visto que em ambos impera uma fé intimista, que apela fortemente ao chamado individual. De modo inapelavelmente cruciante, se confirma o diagnóstico dos pensadores pós-modernos: as atuais formas de vivência do sagrado se apresentam como individualização da fé, ou seja, fé intimista de misantropos. Experiência própria de nossa época que põe em risco os liames comuns, a exercitação da sociabilidade que demanda ao mesmo tempo manutenção e criação, perda da capacidade de pensar nossas existências de modo coletivo e não meramente privado. Consequentemente, é possível afirmar que em última instância a atual forma de religiosidade quer pós-moderna, quer carismático-pentecostal põe em risco a própria existência da Religião. Posto que na babel dos novos tempos, indivíduos atomizados, recolhidos na pura intimidade da fé, gestam uma experiência do sagrado que desconsidera a dimensão comunitária da Religião. Porém, pode haver religião e senso de sacro sem dimensão comunitária, sem mínima vivência coletiva, sem criação de liames afetivos comuns? Uma religião privada de sua dimensão comunitária e afetiva não é religião, mas apenas um rito fossilizado, ou na hipótese atual uma moda cultural do estetismo difuso. Após a proclamação da “morte de Deus”, hoje, com a contribuição das próprias religiões que comunicam o sagrado de modo midiático e misantropo, e mais atualmente por meio dos cristãos virtuais, presencia-se a morte e o sepultamento do sentido social-afetivo e de crítica do presente que ainda eram possíveis no âmbito da Religião. No entanto, de tal morte não se tem certeza de ressurreição. Dessa forma, depois da morte de Deus e da Religião, podem seguir-se as exéquias do homem. A sagrada misantropia é a última estação da via crucis do sacro.
Fran Alavina 

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