quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Quando a Igreja vai sair do armário?


Parece não haver dúvidas para o mundo que a Igreja está no armário. Trancou-se por dentro, e se recusa a abrir a porta, ainda que seja por um breve tempo para diminuir o cheiro de mofo acumulado por séculos.
De dentro do armário, todavia, ela julga o mundo: vendo-o por uma pequena fresta de luz. Desta pequena fresta, ela supõe compreender toda a complexidade da realidade contemporânea, mesmo enxergando apenas uma parte muito pequena e limitada.
 Quando por essa fresta de luz entra um ar de qualquer de novidade, a Igreja esforça-se por diminuir ainda mais esta comunicação com o mundo exterior.
Assim, enquanto o mundo de fora busca se iluminar, a parte de dentro do armário fica cada vez mais escura. E mesmo no meio de uma densa escuridão, quase sempre geradora de apatia e medo, a Igreja institucional continua a repetir uma visão histórica determinada e particularista, mas que sob a ótica da escuridão quer apresentar-se como algo eterno, uma vez que “no escuro todos os gatos são pardos”.
Há, pois, uma confusão de tipo lógico entre: universal e particular, interior e exterior. Em suma, uma visão turva entre: temporal e eterno. Aquilo que é meramente transitório e particular é concebido como universal e perene.
Veja-se, como exemplo desta visão turva, o apego exagerado pela Liturgia, pelos ritos e cerimônias. Isto se verifica muitas vezes nas vozes que se levantaram e ainda se levantam contra o aggiornamento do Concilio Vaticano II.
 Ora, mesmo nos movimentos aparentemente em sintonia com as novas formas de evangelização,particularmente a Renovação Carismática Católica, nutrem um apego exacerbado às antigas formas de Liturgia.
Com efeito, o cristianismo midiático dos carismáticos é uma construção híbrida, típica da mentalidade atual, pois se a forma é pop, o conteúdo é tradicionalista: por fora novo, por dentro velho.
 Alguns reacionários vestem-se de antiguidades, mas no conjunto mais amplo da Igreja institucional nem todos são assim. Trata-se de uma estratégia assaz dissimulada: vestes novas para um corpo doutrinal velho. Em uma época como a nossa, na qual a beleza e a juventude tornaram-se uma obcessão estética social difusa, apresentar algo velho não faria muito sucesso.
Logo, ser preciso adotar uma face jovial e “antenada”. Pode-se participar de um rito antigo, mas haverá um recado na rede social: “#partiumissaemlatim”.
Ah, o Latim! Se pudessem, isto é visível, os carismáticos fariam do latim a língua oficial do movimento, alçando-o de novo como única língua capaz de comunicar o sagrado. Sim, aquela língua considerada divina e pura: a língua litúrgica por excelência.
 Porém, poucos deles sabem que esta língua tão venerada, a única considerada digna da melhor liturgia romana, desde o século XVI, foi diagnosticada pelos renascentistas como uma língua de/e para “homens gagos”. Digna não do ofício divino, mas de homens “bárbaros”.
Já bem sabiam os renascentistas que não há uma “língua divina”, imaculada, pura; e que se presta apenas à Liturgia. As línguas não visam satisfazer liturgias, nem tampouco podem ser mantidas vivas mesmo após sua morte.
Defender o latim como única língua litúrgica significa se apegar em uma artificialidade, reduzindo as capacidades linguísticas à mera instrumentalidade de um tradicionalismo caduco. Toda língua é factível, relativa, impura e desobediente.
 Urdida na trama no tempo, tecida na história e guardando a própria historicidade, a língua é o vestígio mais vivo das construções hodiernas comuns. Por isso, conceber uma língua litúrgica pura nada mais é que querer fazer preponderar os particularismos como universalidade total.
 É tentar extrair razoabilidade do absurdo. Tal encontra-se embebido de violência, visto ser propriamente violento todo gesto que torna absoluto o relativo. Uma língua é tão sacra como qualquer outra, pois todas guardam a capacidade de comunicar, a capacidade de estabelecer afetos e liames comuns, e sem estes, não há religiosidade possível.
 Parece pouco crível que, simplesmente por realizar ritos litúrgicos em uma língua morta, o rito se torne mais solene e sacro. Longe da língua comum, o rito litúrgico se torna apenas exótico. Isto é um prato cheio para os carismáticos midiáticos, pois quanto mais híbrido e exótico, mais solúvel na cultura pop.
Mas qual a relação de toda essa digressão sobre língua e litúrgica com o propósito deste texto, que objetiva tratar sobre a possibilidade da Igreja sair do armário?
Ora, não é de se admirar que os mais reacionários no campo da moral sexual sejam justamente os mais apegados aos ritos litúrgicos antigos. Aqueles que defendem a volta do latim litúrgico são os mais misóginos, maiores cultivadores de toda fobia de cunho sexual.
Mas, como poderia ser diferente, se o primeiro e mais arcano armário da Igreja Institucional é o armário da imposição do celibato. De dentro de seus armários (aqui se pressupõe, em uma mistura de “ingenuidade” e ironia que todos os padres são celibatários) aqueles que abriram mão do campo sexual julgam a sexualidade?
Beirando o absurdo e o ridículo, a condição da Igreja Institucional, ao tentar impor uma visão tradicionalista e retrógrada da sexualidade, é tal como se pedíssemos a um amigo vegetariano que nos recomendasse o melhor restaurante de carnes da cidade.
Nadadores falam de natação, psicólogos de psicologia, administradores de administração, mas no caso da Igreja é como se um Eunuco ditasse ao mundo as regras daquilo que ele não prática, apenas observa. Não se pergunta ao agricultor sobre as melhores condições para a pesca.
 Com efeito, é pouco crível que uma senhora possa aconselhar-se com seu pároco sobre como prolongar as horas de prazer com seu esposo. Aquela senhora sabe, ou pelo menos supõe que padres não possuem vida sexual ativa.
Ora, o espaço do armário é pequeno, lá não cabe vida a dois, mas apenas um.
Todavia, o armário da Igreja é grande e se chama Tradicionalismo: às vezes pudico, outras oportunista. Dentro desse armário maior cabem outros armários menores.
 Aquele que está no armário do tradicionalismo litúrgico, estar ao mesmo tempo no armário da vanguarda do atraso das questões ligadas à sexualidade. Um armário dentro de outro armário: hipérbole do medo e do fechamento, tal nos apresenta a Igreja Institucional.
Não é de hoje, que no seio da hierarquia eclesiástica, os mais reacionários são aqueles que defendem uma liturgia impecável: obsessivos por liturgia, pouco importando outras dimensões. Para estes mais vale o rito litúrgico que a prática da caridade. Se no mundo desencantado da sociedade contemporânea há um rito sem mito, a Igreja caminha na via do rito pelo rito.
O apego excessivo e exclusivista à liturgia produz uma confusão que faz dos particularismos algo universal. Esta confusão de tipo lógico é a mesma daqueles que defendem a moral sexual da Igreja como única e universal, válida sempre e para todos.
 Quem pensa que a missa em Latim é a norma imprescritível da Liturgia, também pensa que a heteronormatividade é a lei sexual imprescritível. Norma litúrgica e norma sexual se confundem. Se nada pode ser modificado na Liturgia, nada pode ser modificado na moral sexual.
 Ora, sempre foi prática da Igreja, ao realizar concílios, não construir novas práticas, mas sim referendar aquelas antigas e usuais: os concílios quase sempre discutiram para não mudar.
Tal não ocorreu com o Concílio Vaticano II. De fato, após o Vaticano II, a Igreja não saiu do armário, porém abriu um pouco mais a fresta, e pode enxergar melhor o mundo. Porém, é preciso reconhecer, com sinceridade, que boa parte dos avanços aí estabelecidos ficou no solo das discussões litúrgicas. Segue-se que após
o Vaticano II, no campo das questões da sexualidade, quase nada se modificou ou foi discutido com autêntico interesse. Por isso, as atuais vazias discussões dos apelos litúrgicos tendem a ser a linha de frente daqueles setores mais reacionários. De dentro do armário do tradicionalismo litúrgico busca-se impedir que outros armários sejam abertos.
Porém, era sabido entre os antigos historiadores latinos que quanto maior o exagero das instituições em suas cerimônias, quanto maior o apelo ritualístico, maior o grau de corrupção em que elas se degeneram. Assim, os exagerados virtuosismos litúrgicos, que vão desde os preciosismos nos paramentos ao modo como se deve pegar no turíbulo, revelam uma crise de identidade acentuada, gerada por uma hemorragia não contida. Ora, sendo a liturgia o aspecto mais visível da realidade da Igreja institucional, não há melhor meio para aplacar um golpe hemorrágico do que se prender ao aspecto mais externo e de maior visibilidade. Todavia, a identidade não está restrita só aos aspectos vivíveis, ao rosto, mas também aos atos, e não há identidade sem atos de reconhecimento.
 Nesse sentido, a lógica do armário impede qualquer reconhecimento, pois como se pode reconhecer escondendo-se?
Em uma inquietação difusa entre sair e ficar no armário, após o Concílio Vaticano II, a Igreja opta na maioria das vezes em continuar no armário. De dentro do armário, a Igreja não pode operar atos de reconhecimento, pois sua visão limitada da realidade impede uma visão do diverso, e sem está não possibilidade de qualquer reconhecimento.
 Daí restando apenas as idiossincrasias, típicas de um lógica de poder perversa que não reconhece nada que escape ao seu modelo pré-estabelecido. De dentro do armário, não há diverso, nem reconhecimento. Desse modo, antes de qualquer coisa, é preciso romper o armário do Tradicionalismo-Cerimonialismo, a fim de que o importante não seja com quem se vai pra cama, nem o que se faz nela, mas sim se há uma cama, se há alguém com quem se possa partilha o afeto e a sexualidade.
 Ora, não foi contra toda carência que o Cristo se definiu: “Eu vim para que todos tenham vida, que todos tenham vida plenamente”, (Jo, 10, 10). Talvez os que se deixam impor ao celibato esquecerem-se dessa pequena, porém profunda frase. De fato, não possuí vida plena, quem recusa, ainda que por amor à vocação, uma sexualidade ativa e sadia. Enquanto a Igreja não sair do armário do tradicionalismo e do celibato imposto, não se pode esperar mudanças na sua visão da sexualidade: nada melhor do que aí estar poderá aparecer.
 Quem se fechou à sexualidade não pode compreender satisfatoriamente a dimensão sexual em suas múltiplas facetas: quer hetero, quer homossexual ou bissexual.
Daí cabe indagar: poderá Francisco, este Quixote do Vaticano, batalhar contra os “moinhos de vento” do falso moralismo sexual, da secular misoginia sacerdotal, em suma contra a homofobia e demais formas de preconceitos alicerçados na identidade de gênero e nas diversas práticas sexuais? Se no clássico de Cervantes, o engenhoso fidalgo era derrotado por gigantes que nada mais eram que moinhos de eventos, veja-se a hercúlea empresa de Francisco: debelar-se contra gigantes de fato. Não apenas imaginados,porém cruelmente reais.
(Fran de Oliveira Alavina)

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