sexta-feira, 22 de maio de 2015

Fé remake, espiritualidade selfie: Religião Estética


Uma compreensão ou um diagnóstico crítico dos fenômenos religiosos atuais não é possível desconsiderando a Estética, e o estético. Não se trata, todavia, da Estética em seu sentido mais hodierno de cosmética, nem da significação acadêmica clássica de reflexão sobre o Belo e as Artes. Trata-se da Estética como âmbito mais amplo da sensibilidade e dos afetos, do estético como ordem de sentido que ultrapassa o limite que outrora lhe era imposto. É inegável que vivemos em tempos no qual tudo se submete ao estético. Isto é, vivemos um tempo de estetização, preponderando o império das imagens, a soberania da visibilidade ostentatória e a excitação ilimitada.
O campo passional é expandido para além da afetividade comum, torna-se, na verdade, alvo da panacéia midiática. Nesta, todos querem ser vistos, mas ninguém vê, pois todos se tornam “narcisos frágeis”, cujo eixo gravitacional é a visibilidade do próprio umbigo. O narciso mitológico satisfazia-se em ver a si mesmo, porém os narcisos contemporâneos nunca estão satisfeitos com sua própria imagem refletida. Os narcisos frágeis não querem contemplar a si mesmos solitariamente, mas querem que os outros os contemplem olhando para si: se ele só olha para si mesmo, os outros devem fazer o mesmo. O narcisismo mitológico não exigia espectadores, na atualidade os narcisos não querem ver, mas ser vistos. O narciso mitológico era belo, os narcisos contemporâneos são violentos e perversos. Nesse sentido, uma selfie não é somente uma inocente herança artística do auto-retrato gestado na pintura clássica, ela nunca é apenas um fenômeno estético. Uma vez que a estética submeteu os mais diversos âmbitos, toda selfie é também um gesto político. Vejam-se quantas selfies são feitas pelos celerados que compareceram nas últimas manifestações contra o governo na avenida paulista. Não importa tanto que estejam lá, mas que se veja que estão lá. Dos fascistas mais cheios de ódio que pedem intervenção militar aos analfabetos políticos que não sabem diferenciar esquerda e direita: todos fazem um número infindável de selfies. Se não são concordes nos discursos, estão unidos pelo mesmo gesto estético-político: apontar a câmera para si mesmo, fazendo da sua imagem uma visibilidade excitante.
O número de selfies é sempre diretamente proporcional ao nível de excitação. Há entre estes dois aspectos um círculo vicioso que satisfaz as imposições difusas do império das imagens, da soberania da visibilidade ostentatória e da excitação ilimitada. Logo, de certo modo, apontar a câmera para si mesmo é um gesto político que reproduz
o narcisismo individualista contemporâneo que desvaloriza a criação dos liames comuns, uma aversão a todo sentir coletivo. “Pode uma soma de individualista criar um espaço comum?” Indaga o pensador italiano Pietro Barcellona, criador do termo “narcisos frágeis” e “egoísmo maduro” para caracterizar o individualismo contemporâneo. Ora, se as mais diversas práticas hodiernas se orientam pela ordem estética da exacerbação imagética e da excitação ilimitada, o que ocorre quando os gestos religiosos, os ditos “atos de fé” reproduzem tais práticas?
Na cultura do sucesso permanece somente quem adquire visibilidade, quem se reduz à sua própria imagem ostentatória, quem excita a si mesmo e os outros se valendo dos meios dispostos pela mídia e pelo mundo virtual. Desse modo, nos mais diversos âmbitos todos são chamados a serem empreendedores da sua própria imagem: publicitários de si. Logo, se para permanecer é preciso unir visibilidade e excitação, ambas midiáticas, não resta outra coisa senão copiar o estabelecido. Neste caso, as Igrejas Neopentecostais, no lado protestante, e a Renovação Carismática, no lado católico, foram os primeiros empreendedores. Resultando disso uma liturgia da cópia, uma fé remake, que além de se adequar ao status quo das perversidades imagéticas, o reproduz, fundando-se na categoria sagrado. O autoproclamado reavivamento do espírito está envolto na soberania da visibilidade ostentatória e na excitação ilimitada.
Trata-se de um pentecostes midiático. São programas de TV, verdadeiros talk shows da fé, adorações que se satisfazem com a transmissão ao vivo do ato, “louvações” na madrugada que em nível de excitação não perdem em nada para as raves, já que acontecem nos mesmo horários, “louvores” que podem ser ouvidos mesmo quando se desliga o áudio do aparelho. Um nível de excitação que a mera repetição do tradicionalismo não pode oferecer. É preciso copiar, celebrar remakes do que aí está, pois, segundo se afirma, é uma exigência da nova forma de evangelizar. Ademais, conforme se repete: “evangelizar é preciso”, embora quase nunca se discuta com propriedade as formas de evangelização. Ora, na simbiose entre religião e estética, evangelizar tornou-se antes de tudo um ato de excitação: sociedade excitada, religião excitada. Aparecimento, portanto, de uma religião estética.
Em um mundo no qual o real tornou-se pesado de mais, o fardo não pode ser mais aliviado pelas formas de lazer tradicionais. É preciso manter-se anestesiado. Mas no caso da sensibilidade contemporânea o efeito anestético só ocorre quando a excitação
alcança um nível extradiornário. É necessário sentir exageradamente, para sentir infimamente. Quem quer sentir tudo, sempre e com a mesma intensidade, em verdade, não tem sensibilidade, uma vez que não reconhece mais a diferença entre ordinário e extraordinário. Um nível de excitação que faz com que o real apareça como ficção, ou seja, um nível de excitação que anestesia. Em tempos da amplitude do âmbito estético o efeito é o contrário do que se mostra na superfície: a estética não é mais que anestética.
Ora, para anestesiar bem é preciso apartar os laços comuns de pertença, afastar-se da concretude do real, reduzindo o sentir à mera disposição anímica individual e não mais como disposição coletiva. Isto faz a religião midiática, proporciona uma fé intimista, egoísta, descompromissada com qualquer transformação ou crítica da realidade social. Não poderia ser diferente, pois o real é sentido como ficção, e é próprio de toda ficção, bem sucedida, gerar no expectador o sentimento de que a ordem de sentido que se assiste não pode ser alterada. Os efeitos da anestética religiosa midiática não é um simples “ópio do povo”, uma vez que sua capacidade alucinógena tem efeitos mais fortes e duradouros do que o narcótico da papoula. Ademias, no “ópio do povo”, havia povo, ou seja, um sentir compartilhado, hoje há apenas narcisos frágeis que reproduzem a lógica perversa das idiossincrasias, que medem o mundo pelas visualizações de suas selfies, fazendo do real uma sucessão da visibilidade de auto-retrato de corpos sem carne.
Fran Alavina.

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