quarta-feira, 28 de março de 2012

CARTA ABERTA AO PADRE JOSÉ COMBLIN


Prezado amigo Pe. José Comblin,

Por ocasião do aniversário de um ano de tua páscoa resolvo te escrever. Penso que estás muito bem, pois ansiavas muito pelo encontro definitivo com aquele que nos chama à vida. Recordo-me de tua incansável luta entre os pobres e teu espírito crítico em relação à Igreja, que conforme pensavas, os tinha abandonado.

Os incomodados sempre te acharam exageradamente crítico, mas quando olhava de onde vinha a crítica, era possível compreender o incômodo. Quero, nesta breve carta, partilhar contigo e com aqueles que dela fizerem leitura, três qualidades de tua pessoa que sempre me chamaram a atenção e me edificam.

Tua humildade. Os homens eruditos da Igreja, meu caro amigo, são reconhecidos não somente pelo seu saber, mas pela falta de acessibilidade. Há teólogos que até parecem autoridades políticas: difíceis de serem encontrados, são inacessíveis. São de uma formalidade e de um linguajar que somente pessoas eruditas os escutam e entendem, são teólogos de gabinete.

Quem te conheceu de perto sabe de tua humildade, que se manifestava no teu jeito de falar sobre os diversos campos do conhecimento humano que dominavas tão bem e na tua cordialidade na relação com as pessoas. Teu jeito tímido, mas comunicativo, atraía as pessoas. Todos esperavam ansiosamente pela palavra que saía de tua boca nas palestras, conferências, retiros e cursos, assim como nos artigos e livros que escreveste. Falavas com humildade e profundidade sobre questões complexas e pertinentes.

Tu fizeste uma opção de morar entre os pobres e com eles aprendeste o jeito humilde que caracteriza o verdadeiro pobre. Aprendeste e ensinaste que ser pobre não é ser amaldiçoado, como pregam muitas de nossas Igrejas. Leste nos evangelhos que Jesus era pobre, destituído de poder e para não entrares em contradição com teus escritos resolveste viver e morrer no meio dos pobres. Os pobres te escutavam com amor e atenção porque viam em ti um homem sábio e pobre.

Tua coragem. Os eclesiásticos, de modo geral, são muito medrosos. Por terem uma vida segura e estável, sem risco algum, são encarcerados pelo medo. Quem tem sua vida assegurada possui grande medo de perdê-la. Para isto, fazem de tudo para mantê-la bem, na devida estabilidade. Estão longe daquilo que foi Jesus: pobre homem que não tinha onde reclinar a cabeça. Identificar-se com este Jesus é correr sérios riscos na vida, pois ele não oferece segurança nenhuma.

Certo dia, um bispo induziu as pessoas pensarem que tu não eras profeta, mas crepúsculo de profeta. Disse também que sofrias do mal daqueles que se revoltam ou que perdem a lucidez. Pobre bispo, não te conhecia suficientemente bem. Tua coragem de criticar a Igreja chamava a atenção de todos. Assim como Jesus criticou a religião de seu tempo, tu, na continuidade dos profetas da nova e eterna aliança, criticaste a Igreja porque a amaste até o fim de tua vida. Tu morreste presbítero da Igreja: testemunha fiel que não se cansou de denunciar as infidelidades dos falsos pastores e falsos profetas.

Tua liberdade. Este tema sempre causou problema na vida da Igreja. Esta sempre teve medo da liberdade. Na Igreja, quando se fala de liberdade, tal expressão sempre vem acompanhada de outros adjetivos: liberdade direcionada, condicionada, explicitada com justificativas pouco plausíveis. Isto explica o medo da Igreja em relação à modernidade. Esta inaugurou a liberdade dos sujeitos e denunciou a falta de liberdade no interior da vida eclesial.

A tua liberdade estava alicerçada no teu testemunho de vida. Tuas palavras e gestos eram de um homem que cultivava a liberdade, que buscava viver em função da liberdade. Isto te dava autoridade para falar a verdade a todos. A liberdade é o fio condutor do teu fazer teológico e foste muito feliz nesta árdua empreitada.

Ensinaste que fora da liberdade não existe felicidade nem salvação. A salvação do povo de Deus é sua liberdade plena. O Deus e Pai de Jesus, nosso bom Deus e Pai, é o Libertador. Todo ser humano, independentemente de credo religioso e cultura, deseja ser livre. A liberdade não tem religião, todos têm direito a ela e nela podem ser felizes. Fora do caminho da liberdade, que para os cristãos é o caminho de Jesus, nenhum ser humano consegue se realizar e, portanto, ser feliz. É preciso se colocar neste caminho, ser corajoso e nele perseverar até as últimas conseqüências. Tu assim o fizeste e encontraste a plena liberdade.

Meu caro amigo, estás fazendo falta no cenário eclesial. Nossa Igreja continua ameaçada pela letargia e pela mediocridade. Tudo parece envolto na inércia. Os pobres continuam clamando por justiça e são poucos os que para eles olham, sentem compaixão, se aproximam e derramam óleo em suas feridas. Há belos projetos e documentos, mas parece que não se sabe bem para onde se vai... Faltam referências significativas, a situação é preocupante.

Tua profecia está viva. Teus livros não foram proibidos. Há muita gente lendo e relendo, encontrando-se e reencontrando-se, buscando ser livre e ajudando na libertação. O Espírito que esteve contigo continua conosco, vivo e atuante; inquietando muita gente e desorganizando aquilo que sempre foi considerado puro, santo e divinamente inspirado. Tua profecia é sinal autêntico da presença do Espírito na Igreja e nós bendizemos a Deus por isso.

Recomendo-me às tuas preces junto a Deus, porque para te considerar santo não preciso esperar por canonização. Santos como tu não são canonizados na Igreja há muito tempo!...

Teu amigo e irmão em Jesus de Nazaré,


Tiago de França
Belo Horizonte – MG, 27 de março de 2012.

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