O campo religioso brasileiro na ciranda dos dados.
A tarefa de encarar a diversidade religiosa como um
valor e uma riqueza é também um repto que se abre para as diversas
igrejas cristãs, assinala o professor e pesquisador do PPG em Ciências
da Religião da UFJF.
"“Se
observarmos os dados dos últimos censos, a tendência da diminuição da
declaração de crença católica é nítida: 1970 (91,1%), 1980 (89,2%),
1991 (83,3%), 2000 (73,6%) e 2010 (64,6%). E as projeções estatísticas
indicam que até 2030 os católicos terão um índice menor que 50% e em
2040 ocorrerá um empate com o grupo evangélico”, constata o docente do
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião, da Universidade
Federal de Juiz de Fora – UFJF,
Faustino Teixeira, ao comentar, em entrevista concedida por e-mail à
IHU On-Line, os dados do
Censo 2010.
Para
Faustino, é curioso constatar como as estratégias realizadas no campo da
Renovação Carismática Católica – RCC,
com a presença dos padres cantores e uma busca de ação mais viva na
área midiática, não surtiram os efeitos desejados. “As iniciativas
realizadas revelam-se tímidas diante de outras implementadas pelos
evangélicos, como a
Marcha para Jesus, que se repete
anualmente com grande sucesso”, diz. E completa: “A meu ver, vamos ter
que nos acostumar com um país cada vez mais pontuado por diversidade
religiosa e também por distintas opções espirituais, religiosas ou não.
Saber lidar com essa pletora de inscrições de sentido constitui um dos
grandes desafios desse novo milênio”.
Faustino Teixeira
(foto) é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião,
da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF, pesquisador do CNPq e
consultor do ISER-Assessoria. É pós-doutor em Teologia pela Pontifícia
Universidade Gregoriana. Entre suas publicações, encontram-se
Teologia e pluralismo religioso (São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2012);
Catolicismo plural: dinâmicas contemporâneas (Petrópolis: Vozes, 2009);
Ecumenismo e diálogo inter-religioso (Aparecida do Norte: Santuário, 2008); N
as teias da delicadeza: Itinerários místicos (São Paulo: Paulinas, 2006); e
No limiar do mistério. Mística e religião (São Paulo: Paulinas, 2004).
Acaba de lançar um novo livro intitulado Os caminhos da mística (São Paulo: Paulinas, 2012).
Confira a entrevista. IHU On-Line – Que mapa religioso se desenha no Brasil a partir dos dados divulgados no último censo?
Faustino Teixeira – Sem dúvida, um mapa marcado por
uma diversidade religiosa que se anuncia. Com respeito ao censo de 2010,
algumas tendências se evidenciaram, como a diminuição dos católicos
romanos, que caíram de 73,6% para 64,6% e o crescimento dos evangélicos,
sobretudo pentecostais, que passaram de 15,4% para 22,2%. Numa
população de 190,7 milhões de pessoas, os católico-romanos somam 123,2
milhões e os evangélicos 42,2 milhões, dos quais 25,3 milhões de origem
pentecostal. Verificou-se ainda na última década um aumento percentual
dos sem religião, mas um pouco abaixo do esperado, de 7,4% para 8,0%
(15,3 milhões).
Cristianismo ainda em destaque
O país permanece com uma marca cristã, já que 86,8% da declaração de
crença do último censo girou em torno das tradições católica ou
evangélica. As outras tradições religiosas no país ainda são tímidas, em
termos numéricos, ainda que sua influência possa ser maior que a
expressa nos simples dados, como no caso do espiritismo, que, apesar de
comportar apenas 2,0% da declaração de crença (3,8 milhões), tem uma
ressonância social bem maior no país.
Tradições religiosas afro-brasileiras
As duas grandes expressões das tradições religiosas afro-brasileiras, a
umbanda e o
candomblé,
continuam tendo o mesmo registro estatístico do censo anterior, com
0,3% de declaração de crença (umbanda com 407,3 mil e candomblé com
167,3 mil). As demais religiosidades permanecem apertadas numa estreita
faixa de 2,7%, onde estão incluídas algumas que começam a despontar com
uma presença mais definida: budismo (243,9 mil), judaísmo (107,3 mil),
novas religiões orientais (155,9 mil) e o islamismo (35,1 mil). Há
também nesse bloco a presença das tradições indígenas, cuja declaração
de crença envolveu 63 mil pessoas.
IHU On-Line – O que as pessoas esperam das religiões a ponto de fazerem trânsitos constantes?
Faustino Teixeira – De fato, as religiões funcionam
como um dossel protetor, fornecendo significado e sentido para as
pessoas. Como tão bem mostrou
Peter Berger, as
religiões têm o potencial de situar ou integrar as experiências-limites
num quadro de significado, favorecendo um referencial importante para a
construção e manutenção da identidade. As pessoas realmente transitam em
busca de significado para a vida, e isso pode ser constatado no Brasil.
O brasileiro, como diz o clássico personagem de
Guimarães Rosa,
gosta de “muita religião” e não se conforma com uma única parada, pois
para ele uma só “é pouca”. Ele precisa ampliar o seu campo de proteção
contra o infortúnio. Os dados dos últimos censos apontam para essa
realidade da experimentação religiosa, mas não se consegue ainda captar
com precisão a declaração de múltipla religiosidade no país. Trata-se de
algo muito comum no Brasil, embora o censo tenha registrado apenas 15,3
mil pessoas que apontaram para isso.
Catolicismo como “celeiro”
O catolicismo exerce no país o papel de “doador universal”, ou seja,
“o principal celeiro no qual outros credos arregimentam adeptos” (
P. Montero e
R. Almeida).
Esse trânsito e mobilidade estão muito vivos entre os evangélicos,
sobretudo os pentecostais, que circulam pelas denominações que não param
de crescer nas últimas décadas no Brasil. A título de exemplo, em
pesquisa realizada em 1992, pelo
Núcleo de Pesquisa do Instituto de Estudos da Religião – ISER na área metropolitana do
Rio de Janeiro,
constatou-se a média de criação de cinco novas igrejas por semana ou
uma igreja por dia útil no triênio de 1990-1992. Outra pesquisa
realizada pelo
ISER e desenvolvida em 1994 sobre a presença evangélica no
Grande Rio
evidenciou que cerca de 70% dos evangélicos daquela região “não
nasceram nem foram criados num lar evangélico”. Ou seja, são fiéis que
migraram de outras tradições religiosas, sobretudo do catolicismo (61%).
Trânsito religioso
Esse fenômeno de experimentação e trânsito religioso é também muito
vivo entre aqueles que se declaram sem religião. Como sabemos, esse
grupo de declarantes é composto, sobretudo, por pessoas que se
desencantaram com suas filiações tradicionais e encontram-se
“desencaixadas”, transitando em busca de vínculos sociais e espirituais.
Para eles, o que conta mais são os “elementos subjetivos”, e de acordo
com o foro íntimo, buscam um nicho de sentido que possa responder às
suas expectativas pessoais. Eles se movem como peregrinos do sentido
entre as instâncias nomizadoras. Em recente entrevista concedida ao
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, a socióloga
Sílvia Fernandes
situou muito bem a questão: “Cada vez menos ouvimos a expressão ‘fulano
se converteu’, mas é mais comum ouvirmos ‘fulano agora é de tal
religião’. Assim, a transitoriedade da adesão religiosa é uma marca
desses tempos”.
IHU On-Line – Em vinte anos, a população católica diminuiu
22%, ou seja, em proporção, a Igreja Católica perdeu mais de um quinto
de seus fiéis. Em seu entendimento, a que se deve este fato?
Faustino Teixeira – A diminuição da declaração de
crença católica vem se acentuando há mais tempo. Se observarmos os dados
dos últimos censos, essa tendência é nítida: 1970 (91,1%), 1980
(89,2%), 1991 (83,3%), 2000 (73,6%) e 2010 (64,6%). E as projeções
estatísticas indicam que até 2030 os católicos terão um índice menor que
50% e em 2040 ocorrerá um empate com o grupo evangélico. Não é tarefa
muito simples indicar as razões que levaram a tal situação. Pode-se
aventar a hipótese de que a estratégia missionária da Igreja Católica
nas últimas décadas tem fissuras importantes. Verifica-se que o
repertório doutrinal mantém-se defasado com respeito aos sinais dos
tempos. Há muita resistência na igreja católico-romana para atualizar a
reflexão e modernizar a postura pastoral em campos que são nodais, como
os da atuação na história, no diálogo ecumênico e inter-religioso e no
âmbito da moral. Nota-se um claro enrijecimento da conjuntura
eclesiástica nos últimos 35 anos, e não há sinais de arejamento
eclesial.
E é também curioso constatar como as estratégias realizadas no campo da
Renovação Carismática Católica – RCC,
com a presença dos padres cantores e uma busca de ação mais viva na
área midiática, não surtiram os efeitos desejados. As iniciativas
realizadas revelam-se tímidas diante de outras implementadas pelos
evangélicos, como a
Marcha para Jesus, que se repete anualmente com grande sucesso.
Ingênuo otimismo
Outro dado intrigante a respeito é a incapacidade dos setores
eclesiásticos, no âmbito católico-romano, de perceberem com clareza a
dimensão da crise em curso. Diante dos dados apresentados, reage-se com
ingênuo otimismo. Ou se diz que aqueles que permanecem católicos são de
fato os mais convictos, e que o catolicismo privilegia não o traço
quantitativo, mas qualitativo; ou então se busca firmar um outro olhar,
sinalizando, na contramão, a vitalidade do catolicismo. É o que se
verificou com a reação de muitos clérigos diante dos dados apresentados
no último censo.
Aos dados do censo do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, buscou-se contrapor os dados do último censo realizado pelo
Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais – CERIS
– a respeito da Igreja Católica no Brasil, cobrindo o primeiro semestre
de 2011, tendo como referência o ano de 2010. Segundo os dados do
CERIS,
o catolicismo no Brasil está “vivo e vicejante”, e isso vem demonstrado
pelo considerável crescimento das vocações sacerdotais e pelo aumento
do número de paróquias no território nacional. O documento sinaliza que
há uma “evolução no número de fiéis” e que “as novas comunidades
religiosas têm também despertado esse reencantamento da fé católica”.
Para quem lê atentamente os dados do censo do
IBGE e
as reflexões sociológico-antropológicas que se seguiram, não há como
deixar-se de surpreender com tamanha ingenuidade. Reagindo a tal ocular,
o sociólogo e ex-assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil –
CNBB,
Pedro Ribeiro de Oliveira – em entrevista ao
IHU –,
assinala: “Achar que aumentar o número de paróquias é aumentar a
presença da igreja no mundo é um equívoco, no meu entender, de todo
tamanho. E o segundo é dizer que a igreja está viva porque aumentou o
número de padres. A igreja está mais clerical, porque aumentou o número
de padres, mas o número de padres não representa a vitalidade da igreja.
A vitalidade da igreja sempre foi a atividade dos leigos” .
Esta análise de
Pedro Oliveira é certeira, e vem de
um perspicaz analista da Igreja Católica no Brasil. Concordo plenamente
com ele quando diz que a vitalidade de uma igreja se mede por sua
capacidade de congregar as pessoas, de entusiasmá-las no trabalho
pastoral. E isso não se vê hoje com clareza. O que existe é uma igreja
que fala para dentro, que deixa de exercer o seu papel público
imprescindível e que perde seu potencial de contágio evangelizador. Como
assinala
Pedro, “hoje o que vemos é a força de atrair
para dentro, ou seja, o bom católico é aquele que está na igreja. Isso
aí é o definhamento da instituição”.
IHU On-Line – As regiões onde o catolicismo mais decresceu
foram naquelas de “recepção de migrantes”, nas fronteiras agrominerais
do Norte e do Centro-Oeste e nas periferias dos grandes centros urbanos
do Sudeste. A que se deve esse fato e como a Igreja Católica atuou para
acompanhar tanto a mobilidade territorial e, principalmente, a
mobilidade religiosa?
Faustino Teixeira – De fato, é nessas regiões que se
verifica a crescente presença pentecostal. Se olharmos atentamente para
o gráfico apresentado pelo
IBGE, veremos que o maior
colorido pentecostal localiza-se nas frentes de ocupação das regiões
Centro-Oeste e Norte, bem como na linha litorânea das grandes metrópoles
do Sudeste, em particular nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo e
Espírito Santo. Em cidades do Rio de Janeiro, como Duque de Caxias, Nova
Iguaçu e Belfort Roxo, o número de evangélicos já superou o número de
católicos. Estes últimos marcam sua presença mais decisiva nas regiões
Nordeste, Sul e no estado de Minas Gerais. A meu ver, a Igreja Católica
tem tido muita dificuldade de entender a dinâmica desta mobilidade
religiosa, estando também carente de instrumentação para reagir a tal
situação. O que alguns documentos da instituição assinalam como meta
essencial da missão católica é “ir ao encontro dos afastados”,
contrariando, de certa forma, a ideia por ela mesma defendida de que a
igreja está viva e atuante.
Queda no número de religiosas
Um dado curioso apontado no censo do
CERIS é a queda
acentuada do número de religiosas no Brasil, que passou de 35.039, em
1961, para 33.386, em 2010. Vale lembrar que as religiosas tiveram um
dos importantes trabalhos na irradiação evangelizadora. A Igreja
Católica fala em buscar os afastados, mas está movida por um discurso
que muitas vezes não lhes interessa ou motiva. Daí toda a “desafeição”
em curso. Ela que era forte na dinâmica popular, de irradiação criadora
no campo e nas periferias, deixou de incentivar ou apoiar o importante
trabalho das comunidades eclesiais de base, que tinham um alcance
evangelizador significativo. Como se diz com acerto, a Igreja Católica
optou pelos pobres, mas não levou a sério essa opção, privilegiando um
trabalho intestino e clericalizante. As igrejas se fecharam, muraram
suas redondezas, protegeram-se dos incômodos outros e limitaram o tempo
para a acolhida dos pobres e excluídos. Esse trabalho veio ocupado, com
eficácia, pelas igrejas pentecostais, que atingem rincões inalcançáveis
pela atual pastoral católica.
IHU On-Line – Em paralelo, percebe-se que há o crescimento da
população evangélica, que passou de 15,4% em 2000 para 22,2% em 2010. O
que isso significa?
Faustino Teixeira – Esse pujante crescimento pentecostal não é um exclusivo fenômeno brasileiro, mas mundial. Como mostrou
Peter Berger
em reflexão sobre a dessecularização do mundo, os dois maiores
fenômenos verificados na cena religiosa mundial relacionam-se com a
irradiação islâmica e a explosão pentecostal. A presença pentecostal,
sinalizada por
Harvey Cox com a imagem do “fogo do
céu”, é um fenômeno impressionante e que merece dedicada atenção. O seu
crescimento no Brasil é mesmo espantoso, embora se perceba um traço de
pulverização, em razão das constantes divisões ocorridas em seu meio e
da criação de novas igrejas a cada momento e nos espaços mais exíguos.
Disputas
Algumas igrejas pentecostais históricas, como a
Assembleia de Deus,
mostram um inaudito vigor, com presença em todos os cantos do país. É a
igreja evangélica de denominação pentecostal mais numerosa, contando
hoje com 12,3 milhões de adeptos, seguida pela
Congregação Cristã do Brasil, com 2,2 milhões de fiéis. Não há semelhante registro de presença entre as evangélicas de missão, com exceção da
Igreja Batista,
que congrega 3,7 milhões de adeptos. Verificam-se, porém, nos últimos
anos disputas acirradas por fiéis no âmbito de algumas pentecostais,
como é o caso da
Igreja Universal do Reino de Deus – IURD e a
Igreja Mundial do Poder de Deus. Segundo os dados do último censo, a
IURD perdeu 228 mil fiéis na última década, quebrando o ritmo de um crescimento que era notável nos anos 1990.
IHU On-Line – Como vê o futuro das religiões no Brasil após a divulgação dos dados do Censo?
Faustino Teixeira – A meu ver, vamos ter que nos
acostumar com um país cada vez mais pontuado por diversidade religiosa e
também por distintas opções espirituais, religiosas ou não. Saber lidar
com essa pletora de inscrições de sentido constitui um dos grandes
desafios desse novo milênio. A tarefa de encarar a diversidade religiosa
como um valor e uma riqueza é também um repto que se abre para as
diversas igrejas cristãs. Nada mais problemático hoje em dia do que
continuar defendendo a precária ideia de que as outras religiões são
destinadas a encontrar o seu acabamento fora de si mesmas, numa pretensa
religião que englobaria em si o domínio da verdade. Nada menos
plausível hoje do que uma tal ideia que, infelizmente, continua viva no
repertório da Igreja Católica pós-
Dominus Iesus. Gosto muito de uma passagem do
Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo,
de 1993, onde se diz que os católicos “hão de respeitar com todo o
cuidado a fé viva das outras Igrejas e Comunidades Eclesiais que pregam o
Evangelho e hão de alegrar-se de que a graça de Deus frutifique entre
eles” (n. 206). E cada vez mais acho que uma tal perspectiva de abertura
e reconhecimento da dignidade da diferença deve ser ampliada para as
outras tradições religiosas.
IHU On-Line – Como pode ser descrita a “desafeição religiosa”? Em que consiste? O que ela significa?
Faustino Teixeira – Em sua entrevista ao IHU,
Pedro Ribeiro de Oliveira
recuperou essa expressão sociológica que se aplica muito bem aos 15,3
milhões de pessoas que se declararam sem religião no último censo. É
curioso notar que, nesse quadro dos sem religião, os que se declaram
ateus ou agnósticos constituem minoria, respectivamente 615 mil e 124,4
mil declarantes. Grande parte dos sem religião estão entre aqueles que
se desencaixaram de seus antigos laços e mantêm sua religiosidade com os
recursos da subjetividade, mais do que com o aporte da tradição. Há
também aqueles que se desafeiçoaram de suas tradições e buscam caminhos
alternativos. É um segmento mais afeito ou disponível às
experimentações. Vem composto por pessoas que transitam entre vários
pertencimentos, sempre sedentos por vínculos sociais e espirituais.