MAIS PADRE BETO,
MENOS PADRE MARCELO
Matheus Pichonelli – www.cartacapital.com.br
Entre os dias 23 e
28 de julho, o Rio de Janeiro sediará a Jornada Mundial da Juventude. Será a
primeira viagem internacional do argentino Jorge Mario Bergoglio como papa
Francisco. A recepção ficará por conta dos padre-cantores Fábio de Melo,
Reginaldo Mazotti e Marcelo Rossi. Serão os cartões de visita de uma
igreja que tenta fazer frente à guinada evangélica com música, pirotecnia,
esvaziamento político e alienação.
O padre Marcelo,
que posa ao lado de políticos, defende que a igreja se afaste da política das
comunidades de base. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil/jul.2008
Não é outra a
impressão que se tem ao abrir e fechar os jornais da segunda-feira 20. Pela
manhã, fui fisgado pela reveladora entrevista à Folha de S.Paulo concedida
pelo padre Marcelo Rossi. Nela, o clérigo declarou, entre outras pérolas, que
tem como função “animar as pessoas” durante as celebrações; que os evangélicos
“invadem” (foi esta a expressão) os horários da tevê; que, para fazer frente
aos “rivais”, as comunidades eclesiais de base – pontos de encontro entre o
Clero, a periferia e as lideranças locais – são velas que iluminam pouco em
comparação aos grandes santuários (ele comparou a igreja católica a um time de
futebol que, apesar dos limites, consegue vencer uma partida graças à sua
torcida); que o perigo destas comunidades é “cair na política”; e cita a
justiça do mundo, que tarda mas chega, ao analisar o ranking de personalidades
confiáveis da Folha de S.Paulo, em que apareceria atrás apenas de
Lula e William Bonner, enquanto o bispo Edir Macedo figurava “lá em 20º”.
Como não era de se
estranhar, ele vestiu as vestes do funcionário-padrão ao se manifestar sobre o
casamento gay: “A palavra de Deus é clara: Deus criou o homem e a mulher. A
igreja acolhe o pecador, mas não o pecado”. Para ele, a adoção de crianças por
casais homossexuais, em discussão em qualquer lugar do mundo, “quebra o sentido
do que é família”.
É o retrato
perfeito de uma igreja alienada e alienante. Uma igreja que confunde fieis com
torcida organizada – e a coexistência de credos com torneio mata-mata – e tem
um sonho de consumo: transformar os fieis em cordeiros passivos, temerosos à
destruição da família pelo pecado e aptos a engolir tudo o que é dito sem
grandes questionamentos.
Que bom que esta
igreja forme cada vez menos padres, atraia cada vez menos gente, e afaste
diariamente tantos fieis.
O padre Marcelo
Rossi, enquanto canta, bate palma e sorri – e se comporta, portanto, como
animador de torcida que não sabe por que canta, bate palma e sorri – parece
jogar para o tapete toda a complexidade de um tecido social cruel. Nesse
tecido, uma nova ordem se manifesta aos poucos, mas é ignorada por uma igreja
que se finge de surda, cega e muda.
Surda porque, em
meio a tanta gritaria, não ouve o clamores por paz e a unidade, pilares do
Evangelho, expressos na vida real. Clamores que rejeitam a velha dicotomia “nós
x eles” – católicos x evangélicos, gays x família, política x retidão – e
pregam a comunhão não de velhos dogmas, mas de valores, estes cada vez mais associados
às liberdades de escolha e expressão.
Cega porque, ao se
distanciar da política, se esquece dos reais métodos de transformação. O apelo
à despolitização, em um mundo de soluções negociadas, é um acinte à
racionalidade. Mas, para o padre Marcelo, a noção de política é em si nociva; e
quanto mais a igreja pensar grande e se afastar das comunidades já afastadas –
as pequenas comunidades que não lotam um templo nem saem bem na foto – melhor. O apelo do
padre Marcelo à alienação é um grande desserviço: leva o fiel a acreditar que o
afastamento da vida política – portanto comunitária – é um atalho para
moralidade pública. Não é. Se as comunidades eclesiais de base se afastaram da
vocação social transformadora não foi por excesso, mas pela ausência de engajamento.
Cantar, dançar e bater palma não moverá montanha nem despertará a atenção das
autoridades políticas, religiosas, sociais e econômicas para os desafios do
novo e do velho século. O padre Marcelo parece não saber, mas é cobrando,
dialogando, propondo caminhos, e não cantando, dançando e batendo palmas, que
se universaliza a dignidade e a justiça – que não se expressa apenas em um
ranking raso de personalidades do momento.
E muda porque se
cala diante das agressões diárias praticadas não pelo Demônio da Bíblia, mas
das ruas de todo santo (ou maldito) dia: as agressões a quem se expressa, a
quem pede o direito de existir, de ir e vir, e a quem não tem a plenitude dos
direitos civis, políticos, sociais e humanos, enfim. Cantar, dançar e
bater palma podem entreter, mas não religam o humano ao que lhe é mais caro.
Não matam a fome – nem física nem espiritual. E não será com ovelhas
domesticadas, passivas, dóceis, massificadas, despolitizadas e incapazes de
refletir sobre o mundo que a Igreja criará a ponta para uma fé genuína. Porque
fé e transformação não precisam ser valores incompatíveis para se manifestar.
Não parece ser só
coincidência o fato de que, no mesmo dia em que foi publicada a entrevista com
o padre-símbolo de uma igreja encantada tenha sido anunciada a excomunhão de
outro símbolo: o de quem escancara o descolamento desta igreja de sua
própria realidade.
Em Bauru, a cerca
de 300 km da capital paulista – e a anos-luz de uma discussão que o Vaticano se
nega a encaminhar – o padre Roberto Francisco Daniel, conhecido como padre
Beto, pagou o preço por ter afirmado, durante suas pregações, que “hoje em dia
não dá mais para enquadrar o ser humano em homossexual, bissexual ou
heterossexual” e “que o amor pode surgir em qualquer desses níveis”. A
igreja, que leva séculos para digerir um mundo novo, levou dias, horas, minutos
para acusar a heresia e o cisma.
Era um fim
inevitável: dias antes da excomunhão, o padre Beto já havia anunciado que
deixava a igreja porque era impossível viver o Evangelho em uma instituição que
não respeita a liberdade de reflexão e expressão e se descolou do modelo de
Jesus Cristo, que viveu esses direitos plenamente e levou as pessoas a pensarem
por si mesmas. “Não é possível ser cristão em uma instituição que cria
hipocrisias e mantém regras morais totalmente ultrapassadas da nossa época e do
conhecimento da ciência”, disse.
Uma instituição,
segundo ele, omissa diante de problemas sociais graves, como o descaso com a
educação, com a segurança pública, com o sistema prisional e um sistema de
saúde público que só serve ao sistema privado. “Se
refletir é um pecado, sou um pecador e sempre serei um pecador”, finalizou.
São duas posturas
diametralmente opostas dentro de uma mesma igreja que tem, na base, uma só
ordem: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.Uma
quer que tudo siga como está: que, em nome da ordem natural das coisas, quem
sofre siga sofrendo em silêncio, descolado da realidade que pede postura,
indignação e transformação. É mais fácil, e menos perigoso, pular e sorrir
cantando que os animaizinhos subiram de dois em dois na arca de Noé.
A outra pede mudanças,
aceita as liberdades e acredita, como dizia uma música estranhamente
desaparecida das celebrações, que comungar é tornar-se um “perigo”; é unir-se
numa “luta sofrida de um povo que quer ter voz, ter vez e lugar”. Uma música
que avisava: se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão.
Uns falam. Outros
erguem as mãos, dão glórias a Deus e, quando a multidão desaparece, apagam as
luzes do templo e escondem os cadáveres debaixo do tapete. Se este for o
exercício pleno da fé, fiquemos com os pecadores. E com a proposta anti-dogma
do cancioneiro popular: amar e mudar as coisas nos interessam mais.
Para uma reflexão sobre que tipo de cristãos e, portanto, de Igreja queremos ser.
ResponderExcluirAbraço fraternal em Cristo.