terça-feira, 24 de dezembro de 2013

“NÃO TENHAM MEDO!”

NATAL (IV)

Lucas é o único evangelista que narra, de forma detalhada e explicativa, o nascimento de Jesus. Em meio a essa narrativa humana e comovente, a cena que sempre chamou minha atenção é aquela entre os anjos e os pastores. Os últimos ficaram um tanto assustados com certos fenômenos sobrenaturais: eles não os entendiam e, consequentemente, não souberam interpretá-los. Os anjos, no entanto, acalmaram os pastores, dizendo: “Não tenham medo!” (cf. Lucas 2, 8-14).
Por que os pastores não precisavam temer nada? Pobres como eram, não tinham condições para cumprir todas as exigências da Lei, tanto das leis impostas pelas pesadas estruturas de sua religião, como dos intermináveis tributos cobrados pelo poder dos romanos. Mas justo eles, os despossuídos daquele tempo, foram os favorecidos para receberem a mensagem daquele Menino na pobreza e humildade. Ao verem o Menino, começaram a entender o que estava acontecendo, e, como relata Lucas, se tornaram, alegremente, testemunhas oculares, “contando o que o anjo lhe anunciara sobre o Menino”, espalhando a notícia por toda parte. Eles deixaram de ter medo e criaram coragem para anunciar “a boa notícia”, fazendo com que todos que os ouviam, ficassem “maravilhados”. É assim mesmo: quem tem coragem, age com coração, com convicção, e, conscientemente, assume sua responsabilidade.
É interessante como na Bíblia aparece o tema de “não ter medo” ou de “não se assustar”. Ele aparece em momentos cruciais na vida das pessoas. Zacarias, ao saber da gravidez da Isabel, se assustou, porém o anjo lhe disse: “Não tenha medo, Zacarias! Deus ouviu seu pedido.” (cf. Lucas 1, 8-20). Maria, ao saber-se a escolhida de Deus para ser a mãe de Jesus, ficou preocupada, mas o anjo falou: “Não tenha medo, Maria, porque você encontrou graça diante de Deus.” (cf. Lucas 1, 26-37). Maria Madalena e a outra Maria, indo ao túmulo de Jesus, ficaram muito assustadas por não encontrá-Lo, mas o anjo, ali sentado, lhes disse: “Não tenham medo ..... Ele não está aqui. Ressuscitou, como havia dito!” (cf. Mateus 28, 1-10). Em outras palavras: não ter medo, não se assustar, significa dizer que há coisa boa para acontecer: aos pastores era anunciada uma boa nova, e os outros exemplos mostram também a mão de Deus intercedendo em favor da vida das pessoas.
Natal, portanto, é a festa dos que não tem medo.
O Menino não teve medo de nascer em meio a um mundo cruel, opressor, dilacerado por divisões internas, “onde não havia lugar para ele”; não teve medo de nascer pobre, distante da corte e das autoridades, porque sabia que podia esquentar-se no colo da humildade da serva sua mãe e nos braços do seu cuidadoso pai; também sentia-se abraçado pelos modestos e bons pastores. Consequentemente, o Natal de
Jesus pode acontecer através de nós, se nos colocarmos no nosso mundo sem medo, defendendo a vida em todo seu esplendor de diversidade. Não podemos contentar-nos com o Natal de Jesus como lembrança daquele fato histórico. É preciso procurar trazê-Lo à vida no cotidiano das nossas palavras e ações, exatamente quando não é dado lugar para ideias e práticas que constroem vida, pois é lá que o Menino quer nascer.
Natal também é a festa da luz.
Deixemos de procurar a luz no fim do túnel da vida, porque o Menino ensinou a sermos luzes dentro do túnel da vida (cf. Carlos Mesters). Quem procura a luz no fim do túnel, já se encontra no desespero. Desespero não combina com quem quer ser do Caminho de Jesus. Desespero é o contrário de coragem, e opõe-se à fé.
Natal é, acima de tudo, a festa do amor.
Nelson Mandela diz: “O amor entra mais fácil no coração do homem do que o ódio!”. Nesta certeza, este homem de Deus encontrou a coragem para lutar por um mundo melhor. Que mensagem bela para o Natal, esta palavra do Madiba.

Seja o nosso Natal verdadeiramente feliz, cheio de luz e amor, sinônimos de Deus, que espantam o medo dentro de nós, a fim de construirmos um mundo de paz e de bem, fazendo nele Jesus nascer, nos recantos da vida, cada dia de novo.


Fortaleza, 19 de dezembro de 2013,
Geraldo Frencken
geraldof73@yahoo.com.br

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

A ALEGRE ANSIEDADE DA ESPERA, DA EXPECTATIVA

NATAL (III)



Todos nós passamos pela experiência da preparação de uma festa. Aqueles dias se tornam, muitas vezes, mais interessantes do que a própria festa, porque as preparativas são realizadas em conjunto: todo mundo mexe, pensa, corre, cria coisas. Essa movimentação suscita aquela ansiedade que cresce na medida em que o dia da festa se aproxima.
A mesma sensação de alegria, de expectativa toma conta das pessoas, quando se fala em festa de Natal. Trata-se de um tempo que é chamado de “Advento”, palavra que vem do verbo latino “advenir”, o que diz respeito a algo que surge posteriormente, que virá logo em seguida. Relembremos alguns costumes antigos da tradição cristã, que expressam bem esta expectativa e alegre ansiedade.
Entre os cristãos há um costume interessante que alimenta, de forma bem expressiva, esse tempo de espera. São colocadas quatro velas, geralmente em forma circular. A primeira é acesa no primeiro domingo do Advento, a segunda no domingo seguinte, e assim por diante. Quando chegamos ao último domingo, antes da festa de Natal, as quatro velas estão acesas e sua luz ilumina e seu calor aquece a nossa esperança pelo novo que está por vir.
Muitas famílias enfeitam suas casas com as decorações típicas da época, desde a árvore de Natal, luzes, velas, tudo bem colorido, e etc. Sempre, porém, é reservado um lugar de destaque para o presépio, criação de Francisco de Assis. Tomara que no nosso presépio haja lugar para os pastores, os amigos prediletos de Jesus.
Na liturgia da Igreja Católica continua o costume de chamar o terceiro domingo do Advento, quando faltam apenas duas semanas para o Natal, de “domingo da alegria” e se canta: “Alegrai-vos sempre no Senhor. Diga novamente: alegrai-vos!”
Também as praças das nossos cidades são ornamentadas com inúmeras luzes, muitas cores, adornos natalinos. Há coros que cantam
músicas, alegrando a todos que ali se concentram.
Em outras palavras: o tempo que antecede à festa de Natal é marcado pela alegria, pela esperança, porque acreditamos que há de começar algo novo em nossas vidas. Paira no ar uma nova proposta de vida, um jeito melhor de se conviver uns com os outros, como canta Ivan Lins: “No novo tempo, apesar dos castigos, estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer.” Invade-nos um ardente desejo de que tudo aquilo que vai contra a vida dê lugar à realização de todos os nossos sonhos que falam de um mundo melhor. Ressoa dentro de nós uma voz que almeja tranquilidade, fraternidade, justiça, paz e amor.
No meio deste borbulhar todo, porém, é preciso procurar um pouco de silêncio, para que cada um possa encontrar-se, em primeira instância, consigo mesmo e, em seguida, se perguntar se está aberto e preparado para o novo, que veio no silêncio e na escuridão da noite, que “carrega a aurora em seu seio!” (Dom Helder). Veremos qual é esta bela aurora.
Geraldo Frencken
geraldof73@yahoo.com.br



domingo, 22 de dezembro de 2013

SUMIRAM OS PASTORES ( NATAL II)






Foi na cidade do Recife, na passagem do século XX para XXI, que observei, pela primeira vez, algo estranho no meu entendimento sobre o Natal. Havia, em diversos bairros, belos enfeites natalinos, como também montagens de vistosos presépios, feitos - diga-se de passagem - com bom gosto. Porém, algo faltava neles: em presépio algum havia figuras que representassem os pastores. Somente Jesus, Maria, José, o anjo, alguns animais e, bem evidenciados, os três “reis magos”, cuja magia ganhava destaque pelo tamanho dos presentes a serem doados a um bebê, volumoso e rosado, “imagem” do Menino Jesus.

De lá para cá observo presépios por toda parte, nos quais os pastores, lamentavelmente, continuam a ser excluídos: presépios nas praças, nos shoppings, em outros estabelecimentos comerciais, em halls de prédios, em consultórios médicos, e etc. sem pastores, enquanto os “reis magos”, com sua “magia das ofertas”, se sobrepõem, de forma soberana, sobre aquelas figuras que “representam” Jesus,Maria, José.

O que significa a não presença dos pastores em nossos presépios?

Em primeiro lugar, o destaque dado aos “reis magos”, e a exclusão dos pastores dos presépios são sinais da mercantilização do Natal: importa é gastar dinheiro, e, de preferência, todo o seu 13º, em compras de presentes, que, na maioria das vezes, os consumidores continuam a pagar durante todo o ano de 2014.

Em segundo lugar, a exclusão dos pastores dos presépios é um retrato fiel da realidade da nossa sociedade. Como os pastores, os pobres daquela época, são excluídos dos presépios chiques, assim os pobres de hoje continuam a ser excluídos. É a afirmação daquilo que vivemos na nossa sociedade: a contínua e escandalosa separação abismal entre alguns poucos ricos e a massificação dos pobres.

Em terceiro lugar, a exclusão dos pastores dos presépios públicos retrata que o mais profundo sentido do Natal acaba de ser deformado, descaracterizado e corrompido.
 Havemos de nos interrogar, constantemente qual o significado fundamental do Natal de Jesus. Como entender Jesus?

O espaço que temos no nosso contexto é reduzido demais para aprofundar este questionamento a contento, mas gostaria de chamar atenção apenas por um aspecto.

Tanto Deus Pai como Jesus podem ser entendidos, somente, a partir do mundo dos pobres. Pois Deus se apresenta e Jesus se revela no mundo dos pequenos e dos excluídos. Impressiona quais pessoas, no mundo bíblico, são escolhidas por Deus para se tornarem sua voz: Abraão, Jacó, José e Moisés, Isaías, Oséias e Amós, Isabel, Maria e José, os pastores, os aflitos e os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os insultados e perseguidos, Pedro, Marcus, Lucas e João, Barnabé e Silas, Priscila e Áquila. Todas estas pessoas simples, do meio do povo, aquela gente que se dispunha a ouvir, compreender e testemunhar uma nova proposta de vida, isto é, a proposta do Reino de Deus. E não é diferente, após os tempos bíblicos, no decorrer da história que se segue até aos nossos tempos: Teresinha do Menino Jesus, Francisco, Antônio, Vicente de Paulo, Tereza de Calcutá, Helder Camara, Martin Luther King, Mandela, Chico Mendes, Margarida Alves, Dorothy, Dulce, Oscar Romero, Dalai Lama, e assim por diante: todos homens e mulheres que, por viverem a humildade, a simplicidade e manifestarem a verdade, criavam condições favoráveis para que Deus pudesse revelar-se ao mundo e Jesus aparecesse por meio do testemunho deles e delas. Deus sempre escolhe “os misericordiosos e os puros de coração” (confere Mateus 5, 1-12), pois “o espírito do Senhor pousará sempre sobre eles e eles promoverão a paz, e por meio deles será proclamada a libertação aos presos, a recuperação da vista aos cegos, a libertação aos oprimidos e, um dia, será proclamado o ano de graça do Senhor: são estes os sinais do anúncio da Boa Nova aos pobres” (confere Lucas 4, 18-19).

Portanto, não podemos excluir os pastores dos nossos presépios, pois ao fazermos isso, tiramos os prediletos de Jesus de perto dele e mostramos que, embora professemos que Ele é o “Deus conosco”, “nós não O conhecemos e nós O desprezamos”, porque quem despreza os pobres, despreza Jesus, despreza Deus (confere Mateus 25, 41-46).

Fortaleza, 19 de dezembro de 2013,
Geraldo Frencken
geraldof73@yahoo.com.br

sábado, 21 de dezembro de 2013

Reflexões acerca do Natal.

NATAL (I)

O NOSSO NATAL MERCANTILIZADO!?
Desejo refletir um pouco acerca de alguns aspectos do Natal, data tão marcante e importante na vida das pessoas. Deixarei guiar-me por quatro fontes, não de forma sequencial, e sim como luzes que se misturam e se influenciam mutuamente: - a observação dos acontecimentos do nosso dia-a-dia desta época; - um pouco da história e dos costumes natalinos; - o sentido originário desta data e os sonhos que sobraram; - o próprio Jesus com sua mãe, seu pai e todos aqueles que nEle se reconheceram e se reconhecem.
O bom observador deve ter percebido que o comércio natalino passou, este ano, por uma demasiada antecipação. Enquanto há poucos anos era dado início aos anúncios comerciais natalinos a partir do fim do mês de novembro, começo de dezembro, este ano estamos mergulhados em e entupidos por ofertas de preços espetaculares dos presentes de natal, já desde o fim do mês de outubro, enquanto aquela chatérrima sequencia de notas, formando o insuportável “Jingle Bells”, tapulha nossos ouvidos, decompondo nosso gosto e sensibilidade musicais.
Pergunto-me o quanto tudo isso nos afasta do espírito natalino que diz respeito a algo novo que pede passagem, a fim de “habitar entre nós”.
Considero o “novo”, o “não conhecido”, o “não esperado”, o “surpreendente” uma das características mais belas do Natal, isto é, de todas as formas de Natal, de toda vida nova, seja de planetas ou estrelas, de ideias, pensamentos ou descobertas, de seres humanos, animais ou plantas, de sentimentos, emoções ou paixões. A língua alemã expressa bem o que pretendo dizer, pois nela se fala em “AHA-Erlebnis”, o que significa a inesquecível experiência e vivência da admiração, do encanto. O novo se apresenta a nós e nos convida a um diálogo entre o já percorrido caminho da nossa história e a originalidade de todo novo ser, que carrega dentro de si a possibilidade de dinamizar nossa vida e transformá-la.
A mercantilização mata tudo isto dentre de nós, porque a “lógica” do comércio é propaganda, é concorrência, disputa, oferta, e, acima de tudo, é a frieza do cálculo, é o endeusamento do lucro.
A “lógica” do mercantilismo e o momento natalino se contradizem.
De um lado, o comércio se impõe, nos engana e nos ludibria por meio de suas propagandas berrantes, suas cores ofuscantes e músicas ensurdecedoras, que nos
transportam para o mundo da ilusão e nos afundam em ambientes onde reinam valores passageiros. Do outro lado, o Natal, através do verdadeiramente “novo”, acontece no silêncio, no escuro da madrugada, quando o novo dia aponta no horizonte, quando a esperança se torna realidade. O “surpreendente” necessita do espírito da reflexão que leva à admiração, ao encanto, a fim de nos elevar, enriquecidos, ao mundo do real e definitivo, conquistável por meio de valores a serem adquiridos, mas que perpetuam.
Há muito tempo, mais precisamente no século II da nossa era, o Papa Teléforo – papado entre 126 e 136 - lançou, no ano de 128, um edito, regulamentando a festa de Natal, a fim de coibir os abusos, uma vez que ela era celebrada sem espiritualidade alguma.
Será que não está na hora de nos interrogarmos se o nosso Natal também não está sendo ofuscado debaixo de abusos, neste caso, mercantilistas, que nos cegam, enquanto perde, pouco a pouco, a sua espiritualidade? E mais: o que podemos fazer para nos reconduzirmos ao espírito originário e cristão do Natal?

Fortaleza, 19 de dezembro de 2013,
Geraldo Frencken
geraldof73@yahoo.com.br

domingo, 15 de dezembro de 2013

CURAR FERIDAS



por José A. Pagola
atuação de Jesus deixou João Batista desconcertado. Ele esperava um Messias que eliminaria o pecado do mundo impondo o juízo rigoroso de Deus, ao invés de um Messias dedicado a curar feridas e aliviar sofrimentos. Da prisão de Maqueronte, envia uma mensagem a Jesus: “És tu o que viria ou devemos esperar por outro?”

Jesus responde com sua vida de profeta curador: “Digam a João o que estão vendo e ouvindo: os cegos veem e os paralíticos andam; os leprosos estão curados e os surdos ouvem; os mortos ressuscitam e aos pobres se anuncia a Boa Notícia.”

Jesus se sente enviado por um Pai misericordioso que deseja para todos um mundo mais digno e feliz. Por isso, se entrega a curar feridas, sanar doenças e liberar a vida. E, por isso, pede a todos: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso”.

Jesus não se sente enviado por um juiz rigoroso para julgar aos pecadores e condenar o mundo. Por isso, não amedronta a ninguém com ações justiceiras:oferece a pecadoras e pecadores sua amizade e seu perdão. E, por isso, pede a todas e todos: “Não julgue para não ser julgada/o”.

Jesus nunca cura de forma arbitrária ou por sensacionalismo. Cura, movido pela compaixão, buscando restaurar a vida das pessoas abatidas, doentes e desanimadas. São estas as primeiras que têm aexperiência de Deus amigo da vida digna e saudável.

Jesus não insistiu no caráter prodigioso de suas curas, nem pensou nelas como receita fácil para suprimir o sofrimento do mundo. Apresentou sua atividade curadora como símbolo para seus seguidores compreenderem em que direção atuar para abrir caminhos ao projeto humanizador do Pai que Ele chamava “Reino de Deus”.

O Papa Francisco afirma que “curar feridas” é uma tarefa urgente: “Vejo com clareza que o que a Igreja necessita, hoje, é uma capacidade de curar feridas e oferecer calor, intimidade e proximidade aos corações... Isto é a primeira coisa: curar feridas, curar feridas”. Depois fala em “cuidarmos das pessoas, acompanhando-as como obom samaritano que lava, limpa e consola”. Fala, também, de “caminhar com as pessoas na noite, saber dialogar, descer à noite escura sem perder-se”.

Ao confiar sua missão aos discípulos, Jesus não os imaginava como doutores, hierarcas, liturgistas e teólogos, mas como curadores. A missão é dupla: proclamar a proximidade do Reino de Deus e curar as/os doentes.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Por que no meio da dor os negros, dançam, cantam e riem?


Leonardo Boff - teólogo, filósofo e escritor
Milhares de pessoa em toda a África do Sul misturam choro com dança, festa com lamentos pela morte de Nelson Mandela. É a forma como realizam culturalmente o rito de passagem da vida deste lado para a vida do outro lado, onde estão os anciãos, os sábios e os guardiães do povo, de seus ritos e das normas éticas. Lá está agora Mandela de forma invisível mas plenamente presente acompanhando o povo que ele tanto ajudou a se libertar.
Momentos como estes nos fazem recordar de nossa mais alta ancestralidade humana. Todos temos nossas raízes na África, embora a grande maioria o desconheça ou não lhe dê importância. Mas é decisivo que nos reapropriemos de nossas origens, pois elas, de um modo ou de outro, na forma de informação, estão inscritas no nosso código genético e espiritual.
Refiro-me aqui a tópicos de um texto que há tempos escrevi sob o título Somos todos africanos, atualizado face à situação atual mudada. De saída,  importa denunciar a tragédia africana: é o continente mais esquecido e vandalizado das políticas mundiais. Somente suas terras contam. São compradas pelos grandes conglomerados mundiais e pela China para organizar imensas plantações de grãos que devem garantir a alimentação, não da Africa mas de seus países, ou negociadas no mercado especulativo. As famosas land grabbing possuem, juntas, a extensão de uma França inteira. Hoje, a África é uma espécie de espelho retrovisor de como nós humanos pudemos no passado, e podemos hoje ainda,  ser desumanos e terríveis. A atual neocolonização é mais perversa que a dos séculos passados.
Sem olvidar esta tragédia, concentremo-nos na herança africana que se esconde em nós. Hoje é consenso entre os paleontólogos e antropólogos que a aventura da hominização se iniciou na África, cerca de 7 milhões de anos atrás. Ela se acelerou passando pelo homo habiliserectusneanderthalense até chegar ao homo sapiens,  cerca de 90 mil anos atrás.Depois de ficar 4,4 milhões de anos em solo africano, este se propagou para a Ásia, há 60 mil anos; para a Europa, há 40 mil anos; e para as Américas há 30 mil anos. Quer dizer, grande parte da vida humana foi vivida na África, hoje esquecida e desprezada.
É consenso do paleontólogos e antropólogos que a aventura da hominização se iniciou na África, há cerca de 7 milhões de anos
A África, além de ser o lugar geográfico de nossas origens, comparece como  o arquétipo primal: o conjunto das marcas, impressas na alma de todo ser humano. Foi na África que este elaborou suas primeiras sensações, onde se articularam as crescentes conexões neurais (cerebralização), brilharam os primeiros pensamentos, irrompeu a criatividade e emergiu a complexidade social que permitiu o surgimento da linguagem e da cultura. O espírito da África está presente em todos nós.Identifico três eixos principais do espírito da África, que  podem nos inspirar na superação da crise sistêmica que nos assola.
O primeiro é o amor à Mãe Terra, a Mama Africa. Espalhando-se pelos vastos espaços africanos, nossos ancestrais entraram em profunda comunhão com a Terra, sentindo a interconexão que todas as coisas guardam entre si, as águas, as montanhas, os animais, as florestas e as energias cósmicas. Sentiam-se parte desse todo. Precisamos nos reapropriar deste espírito da Terra para salvar Gaia, nossa Mãe e única Casa Comum.
O segundo eixo é a matriz relacional (relational matrix no dizer dos antropólogos). Os africanos usam a palavra ubuntu que significa:“Eu sou o que sou porque pertenço à comunidade” ou “eu sou o que sou através de você, e você é você através de mim”. Todos precisamos uns dos outros; somos interdependentes. O que a física quântica e a nova cosmologia dizem acerca de interconexão de todos com todos é uma evidência para o espírito africano.
A essa comunidade pertencem os mortos como Mandela. Eles não vão ao céu, pois o céu não é um lugar geográfico, mas um modo de ser deste nosso mundo.  Os mortos continuam no meio do povo como conselheiros e guardiães das tradições sagradas.       
O terceiro eixo são os rituais e celebrações. Ficamos admirados que se dedique um dia inteiro de orações por Mandela, com missas e ritos. Eles sentem Deus na pele, nós ocidentais na cabeça. Por isso dançam e mexem todo o corpo, enquanto nós ficamos frios e duros como um cabo de vassoura.
Experiências importantes da vida pessoal, social e sazonal são celebradas com ritos, danças, músicas e apresentações de máscaras. Estas representam as energias que podem ser benéficas ou maléficas. É nos rituais que ambas se equilibram e se festeja a primazia do sentido sobre o absurdo.
Notoriamente, é pelas festas e ritos que a sociedade refaz suas relações e reforça a coesão social. Ademais nem tudo é trabalho e luta. Há a celebração da vida, o resgate das memórias coletivas e a recordação das vitórias sobre ameaças vividas.
Apraz-me trazer o testemunho pessoal de um dos nossos mais brilhantes jornalistas, Washington Novaes:“Há alguns anos, na África do Sul, impressionei-me ao ver que bastava se reunirem três ou quatro negros para começarem a cantar e a dançar, com um largo sorriso. Um dia, perguntei a um jovem motorista de táxi: "Seu povo sofreu e ainda sofre muito. Mas basta se juntarem umas poucas pessoas, e vocês estão dançando, cantando, rindo. De onde vem tanta força?" E ele: "Com o sofrimento, nós aprendemos que a nossa alegria não pode depender de nada fora de nós. Ela tem de ser só nossa, estar dentro de nós". Nossa população afrodescendente nos dá a mesma amostra de alegria que nenhum capitalismo e consumismo pode oferecer.